Ao defender a prisão da cúpula da Assembleia do Rio, a procuradora-geral, Raquel Dodge, disse que o estado virou uma ‘terra sem lei’, com ‘descalabro institucional’

Nas palavras da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ao pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) que anule a sessão da Assembleia Legislativa (Alerj) que mandou soltar da prisão três deputados estaduais do PMDB na semana passada, o Rio é atualmente uma “terra sem lei”, vive “descalabro e anomalia institucional”, numa situação de “superlativa excepcionalidade”. Com três ex-governadores e três ex-chefes do Legislativo na cadeia, parecem ter atingido seu ápice tanto a desmoralização das autoridades e instituições fluminenses quanto o combate à corrupção no estado. Se, na seara jurídica, Cabral, Picciani e companhia seguirão respondendo pelo que são acusados, a perspectiva da História, da Sociologia e o passado político do estado ajudam a dimensionar o momento inédito por que o Rio passa — e como se chegou até aqui, em explicações adicionais, além da ganância dos políticos e da certeza da impunidade. O historiador Milton Teixeira recua no tempo para mostrar que a novidade é a punição das autoridades. — Fato é que o Rio sempre foi “terra sem lei”. Governadores, desde a família Sá, sempre mandaram no estado acima das leis. Não só aqui: a Constituição do Império dizia, no primeiro artigo, que o imperador estava acima da lei. E a impunidade sempre dominou, nos tempos de colônia, Império, na República. O primeiro deputado cassado no Brasil, Barreto Pinto, foi em 1947, e por ter posado de cuecas — lembra Teixeira.

A abundância de provas e a sucessiva revelação de esquemas expostos pelas investigações tornam inevitável pensar por que aqui desviou-se tanto, ou se os políticos do Rio são mais corruptos do que os outros. O cientista social Marcelo Burgos, professor da PUC-Rio, elenca o retrospecto recente da política fluminense para explicar como o estado chegou à “tempestade perfeita” que desembocou na hegemonia do PMDB marcada por escândalos. — O Rio não conseguiu desenvolver partidos com relação orgânica com a sociedade. Em São Paulo, fortaleceram-se partidos com mais lastro com a sociedade civil, como o PT, junto à classe operária, o PSDB, à classe média. Aqui, tivemos o que se diria um populismo de esquerda, nos tempos de Brizola, um arranjo pragmático-clientelista (Garotinho) até chegar à máquina política super blindada de Cabral e Picciani. Seja pela névoa produzida pelos grandes eventos, ou pelo efeito anestésico das UPPs, fechou-se o ciclo perfeito: bênção, e investimentos, do governo federal do PT, uma Alerj transformada em extensão do Executivo, TCE e agências reguladoras sem desempenhar seu papel, Ministério Público impotente, mesmo a imprensa... Cabral e companhia são frutos deste cenário — analisa Burgos, prevendo que a população se afaste mais da política. — Acho que teremos abstenção enorme em 2018. Deve aumentar a apatia e despolitização da população, que é uma das causas deste quadro. O escritor Alberto Mussa acrescenta uma crise de identidade do Rio:

— A corrupção não surpreende, mas o grau a que se chegou é espantoso. O Rio tem histórico de insubordinação. Desde a colônia. Houve deposição de governador, a Revolta da Cachaça (contra o aumento de impostos da aguardente, em 1660). Mais recentemente, era onde políticos aliados à ditadura tinham menos votos. Desde a mudança da capital para Brasília, houve declínio, houve a falência da capital, explosão de violência. Parecíamos viver um reerguimento. A impressão, hoje, é que a população está indignada, mas não se mobiliza. Não vejo questionamento do poder na medida em que se mereceria. Doutor em Ciência Política e pesquisador da Casa de Rui Barbosa, o carioca Christian Edward Lynch relaciona a deterioração institucional do Rio à mudança da capital. — Não acho que exista alguma coisa na água do Rio Guandu que nos faça mais ladrões do que os outros. É preciso enxergar o problema sem imediatismo, para entender que não é só “quem roubou quanto”. Há um ciclo negativo de moralidade, de eficiência, ligado também à complexidade de se administrar o Rio. Aqui há mais servidores federais que Brasília. É uma espécie de distrito federal disfarçado — argumenta, antes de completar. — A mudança de capital, ligada à fusão, que uniu uma excapital federal a um estado (interior) de realidade totalmente diferente que tornou o Rio um estado anômalo, liderado por uma elite política que não se dá conta de que o Rio virou periferia.