Correio braziliense, n. 20024, 18/03/2018. Cidades, p. 22

 

As mulheres d'água

Deborah Fortuna e Pedro Grigori

18/03/2018

 

 

QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA » Fóruns Mundiais e Alternativo da Água destacam debates sobre desigualdade de gênero dentro da gestão de recursos hídricos. No DF, crise fez com que agricultoras reduzissem as produções e se enchessem de prejuízos e incertezas

Os olhos azuis e a pele clara de Prakceda Jakubowsi revelam o cansaço e a garra de uma mulher que, aos 73 anos, nunca parou de lutar. Ela enaltece os títulos de produtora rural e de dona de casa e, para mantê-los, acorda às 6h e só para quando o sol se põe. Vivendo às margens do Descoberto, dona Prakceda tem uma relação incomum com o lago, que oferece tudo de que ela precisa.

Onde hoje há um reservatório, há cinco décadas, havia a casa da família, que perdeu tudo quando as comportas foram abertas e inundaram a região. Em uma nova residência, foram as águas do Descoberto que germinaram a plantação de flores tropicais que sustentam a família Jakubowsi, com 11 pessoas, das quais oito são mulheres. No auge da crise hídrica, a escassez fez 75% da produção morrer. Em outubro, o Descoberto ficou tão seco, que Prakceda reencontrou a estrutura da casa que perdeu com a criação do lago.

Nos anos 70, após o Descoberto inundar parte de Brazlândia, a família Jakubowsi tentou reconstruir a vida em Tocantins, mas voltou às margens do lago ao conseguir parcelar uma propriedade de 15 hectares. “Era só terra. Eu passava o dia em cima de um tratorzinho. Isso aqui (fala enquanto mostra a mini floresta, rica em diversidade, que construiu no território) fui eu que fiz sozinha”, recorda.

Nos pulsos, Prakceda leva 10 pontos adquiridos após uma cirurgia para corrigir problemas causados por tanto tirar leite das vacas. Depois disso, decidiu mudar de ramo, plantando rosas, um amor antigo da mulher. Enquanto passava o dia na roça, a pequena Rosany Jakubowsi, hoje com 50 anos, cozinhava as refeições da família. A outra filha, Márcia Jakubowsi, 48, ajudava a mãe nas plantações e, quando ficou mais velha, tornou-se a responsável por fechar acordo com grandes compradores. Para atender esses negociantes, Rosany começou a cozinhar para fora e, assim, juntando o talento das três com o apoio do pai, Francisco Carvalho, elas montaram um rancho aberto ao público.

Hoje, quem vê a plantação toda verdinha, não imagina que há quatro meses a família quase desistiu de tudo devido à seca. “As bichinhas (referindo-se às plantas) morriam na minha frente e eu não podia fazer nada. A vontade que dava era de vender tudo e ir embora. Mas para onde? A seca está em todo lugar, menos nas piscinas do centro de Brasília”, comentou Prakceda, ao protestar contra as restrições de captação da área rural do DF que, no ano passado, permitia aos produtores pegarem água apenas por três horas a cada dois dias.

As mulheres da família temem o futuro. “Acho que este ano pode ser ainda pior do que o ano passado”, aposta Prakceda. Já Márcia pede que o governo ajude os produtores rurais a continuarem na região. “Nós queremos ficar e produzir água, mas, precisamos de apoio”, roga Márcia.

Desigualdade

Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) verificou que, em quase todas as localidades do mundo, quando há falta de água ou má distribuição de serviços de saneamento, são mulheres e meninas as principais prejudicadas, já que coletam recursos para manter a higiene do lar. Por dia, elas gastam, juntas, 200 milhões de horas andando para ter acesso ao recurso.

Em âmbito nacional, esse número é menor, mas ainda assustador. O projeto do doutorado em Sociologia da pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) Daniela Nogueira analisou o semiárido brasileiro e identificou que cada mulher em situação de escassez gasta entre três e quatro horas por dia para buscar água para as residências.

“Em tempos de escassez, acaba se tornando uma carga de trabalho que cai de uma forma muito específica sobre elas. É uma tarefa não compartilhada, que rouba tempo que poderia ser investido em algo para a própria pessoa”, conta Daniela.

Enquanto, dentro das residências, elas são as responsáveis pela água, a criação de políticas públicas ainda está em mãos masculinas.

No Conselho Nacional de Recursos Hídricos -- entidade formada por representantes do governo e de organizações civis, responsável pela implementação da gestão dos recursos hídricos brasileiros — dos 57 membros titulares, apenas 14 são mulheres. No DF, dos 80 membros, apenas 23 são do sexo feminino.

A situação é tão grave que os fóruns Mundial e Alternativo da água, que ocorrem nesta semana em Brasília, reservaram lugar em suas programações para o debate de gênero.

 

Continue o debate

FÓRUM MUNDIAL DA ÁGUA

Roda de conversa -

Mulheres e água

Quando: Quarta-feira, às 14h30

Onde: Arena das águas, Vila Cidadã

Gratuito sob inscrição

 

Mulheres - Perspectivas e desafios

Quando: Quinta-feira, às 9h30

Onde: Centro de Convenções Ulysses Guimarães, sala 18

Pago

 

FÓRUM ALTERNATIVO MUNDIAL DA ÁGUA

A perspectiva de gênero nas lutas pelas águas

Quando: Hoje, às 9h

Onde: PJC, sala  - UnB

Gratuito

 

Mulheres, demandas e luta pela água

Quando: Hoje, às 14h

Onde: PAT Sala 12 - UnB

Gratuito