O globo, n.30783 , 17/11/2017. ECONOMIA, p.17

MP CRIA NOVAS DÚVIDAS

BÁRBARA NASCIMENTO

GERALDA DOCA

MARCELLO CORRÊA

 

 

Na jornada por horas ou dias, não está claro como será feito o pagamento complementar ao INSS

A medida provisória ( MP) editada pelo governo para ajustar a reforma trabalhista acabou criando uma série de dúvidas para patrões e empregados, sobretudo no que diz respeito aos contratos por dias ou horas, a chamada jornada intermitente. A modalidade é nova e foi criada pela reforma. As alterações feitas já começaram a valer, mas, na prática, nem mesmo o governo sabe informar como empregado e empregador farão para levar as novas normas para o dia a dia. Um dos pontos que estão sem resposta é sobre como será feita a contribuição complementar pelo trabalhador cuja soma das remunerações for menor que o salário mínimo. Segundo especialistas, o governo pode ter que alterar mais uma legislação, a previdenciária, para fazer valer as novas regras. Enquanto isso, permanece o clima de insegurança em relação ao novo texto, que já está em vigor, mas ainda pode ser modificado no Congresso.

A MP diz que, nos casos em que o salário do mês for menor que o mínimo ( hoje em R$ 937), o empregado deve recolher a diferença ao Regime Geral de Previdência Social ( RGPS), o INSS, para não ter o mês descontado do tempo para a aposentadoria, nem da carência para acesso a benefícios. Na interpretação do Ministério Público do Trabalho ( MPT), a mesma regra deve valer ainda para contratos parciais e para empregados que trabalham sob a forma de pessoa jurídica.

O problema é que, na prática, o sistema da Receita Federal não dá a alternativa de contribuição “fatiada”. Além disso, não há uma guia para o trabalho intermitente, apenas para empregados domésticos e autônomos. As guias para autônomos não podem ser usadas pelo intermitente porque só preveem alíquotas de 11% e 20%, e o empregado por horas ou dias que recebe menos que um salário mínimo deve recolher 8%.

— O governo vai ter que editar uma norma regulamentando essa situação. Ou o sistema terá que começar a aceitar contribuições menores. Há uma dúvida que, possivelmente, vai levar a muita judicialização — afirmou o advogado e especialista em Direito do Trabalho Paulo Lee.

O especialista em Direito do Trabalho Rodolfo Torelly acredita que será preciso criar um sistema semelhante ao utilizado pelos microempreendedores individuais ( MEI). Mas critica a burocracia:

— Imagine o trabalho que será para fazer essa conta... E, ainda: quem ganha menos de um salário mínimo tem condições de pagar adicional?

O advogado Silvio Senne, da consultoria Sage, vê necessidade de ajustes em duas leis previdenciárias de 1991 para que a regra seja regulamentada. Para isso, seria preciso editar novo projeto de lei ou medida provisória, o que aumenta o grau de incerteza sobre a reforma. — Gera insegurança — resume. Ele também entende que o trabalhador não pode ter o tempo descontado caso não consiga fazer a contribuição complementar por falta de um sistema adequado para isso:

— Enquanto não houver possibilidade prática de fazer essa contribuição, o trabalhador não pode ser punido por isso.

O GLOBO procurou a Receita, o Ministério do Trabalho e a Secretaria da Previdência. Os dois últimos afirmaram que os esclarecimentos seriam dados pelo Fisco. No fim da noite de ontem, a Receita informou que a Caixa vai disponibilizar, no dia 24 de novembro, uma nova versão do Sistema de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social para atender aos trabalhadores intermitentes. O Fisco ainda informou que está sendo elaborado um novo código de pagamento para a Guia de Previdência Social, em que o segurado poderá recolher eventuais contribuições complementares.

Na avaliação do advogado Domingos Fortunato, sócio da área trabalhista do escritório Mattos Filho, impedir o acesso dos trabalhadores que não conseguirem fazer a contribuição adicional é contestável na Justiça.

— Isso vai ser questionado. É impossível que a pessoa contribua e não receba por isso. Seria um valor retido pelo Estado sem qualquer contrapartida — pontua o especialista.

 

FÉRIAS E 13 º SEM DEFINIÇÃO

Gisela Freire, sócia da área trabalhista do Souza Cescon, entende que a situação é mais grave porque o recolhimento é obrigatório. Ela defende uma medida para que o trabalhador que não conseguir fazer a complementação tenha acesso ao seguro social, ainda que de forma proporcional. Mas lembra que a Constituição proíbe que qualquer benefício seja inferior ao salário mínimo:

— Se a contribuição fosse facultativa, haveria margem para discussão. Mas a lei causou uma situação complicada. Eles vão ter que fazer alguma alteração para que se proporcionalize ( os benefícios).

A MP da reforma também deixa no limbo os trabalhadores intermitentes com relação a três direitos básicos: aviso prévio, férias e décimo terceiro salário. Segundo técnicos do governo envolvidos nas discussões, a medida não deixa claro como será feito o pagamento desses encargos, e isso terá que ser corrigido pelo relator no texto substitutivo da proposta. A ideia é forçar o entendimento e aplicar para os intermitentes as mesmas regras dos demais trabalhadores: quem trabalhar por 15 dias, no mínimo, para um mesmo empregador fará jus a décimo terceiro e férias proporcionais. O mesmo deve valer para a indenização do aviso prévio ( nas rescisões de contrato de trabalho, sem justa causa), que é calculada com base na média dos últimos 12 salários, limitada a 90 dias, de acordo com o tempo de serviço.

— O trabalho intermitente terá que ser repensado no Congresso, porque há várias lacunas na MP — disse um técnico.

 

Perguntas e respostas

 

– Que regras do trabalho intermitente foram alteradas pela medida provisória?

Entre as principais mudanças do novo texto, estão a quarentena de 18 meses entre a demissão de um empregado em jornada convencional e a recontratação como intermitente, regras para acesso e pagamento de benefícios previdenciários, e a previsão de extinção de contrato, caso o empregado não seja convocado pelo menos uma vez em um ano.

 

– O empregado que ganhar menos que um salário mínimo no fim do mês terá acesso aos benefícios da Previdência, como auxílio- doença?

Não necessariamente. A MP criou um sistema de contribuição complementar para esses trabalhadores. Se a soma das remunerações do mês for menor que o mínimo ( R$ 937), o empregado terá de fazer um recolhimento extra, de 8% sobre essa diferença. Se o total recebido foi R$ 800, por exemplo, o trabalhador terá que recolher ao INSS 8% sobre os R$ 137 restantes. Se não contribuir, o mês trabalhado não contará para cálculo da aposentadoria nem para a carência de acesso aos benefícios. Para receber o auxílio- doença, são necessárias pelo menos 12 contribuições.

 

– Como fazer essa contribuição complementar?

Não está claro. Hoje, o sistema da Receita Federal não permite a emissão de uma guia adequada para esse recolhimento, e o governo não informou que ajustes serão feitos.

 

– O trabalhador intermitente tem acesso ao seguro- desemprego?

– Se for demitido sem justa causa, sim, como os outros trabalhadores. Mas a MP prevê que, se o empregado não for convocado durante um ano, o contrato é extinto. Nesse caso, o trabalhador não terá direito ao seguro- desemprego. Além disso, só terá acesso à metade do aviso prévio e receberá indenização de 20% sobre o saldo do FGTS, em vez dos 40% em caso de demissão. Em caso de extinção de contrato, o empregado também poderá movimentar até 80% do dinheiro depositado no Fundo.

 

– O trabalhador intermitente pode parcelar as férias?

Pela MP, sim. Essa possibilidade não estava prevista no texto original da reforma trabalhista. A nova redação permite o parcelamento das férias em três períodos, desde que haja acordo entre as partes.

 

– O que é o período de quarentena?

O empregado em jornada convencional não pode ser demitido e recontratado como intermitente. É preciso esperar ao menos 18 meses. Essa regra só vale, porém, até 31 de dezembro de 2020. Depois disso, acaba a quarentena.