Correio braziliense, n. 20011, 05/03/2018. Política, p. 3

 

Uma cidade deprimida

Simone Kafruni

05/03/2018

 

 

GUERRA URBANA » Com o Rio mergulhado em uma onda de violência e sob intervenção federal, o sorriso deu lugar à preocupação no dia a dia da população

Rio de Janeiro — Duas semanas após a aprovação da intervenção federal no Rio de Janeiro, o carioca perdeu a espontaneidade do sorriso. O semblante do povo simpático que encantou turistas do mundo todo durante a Copa do Mundo e as Olimpíadas agora tem contornos de preocupação. A cidade está mais triste. Os bares noturnos, mais vazios. “Não há mais lugar seguro no Rio” é um mantra entre a população. Do morador de comunidade ao do Leme, frequentador do Shopping Rio Sul, em Botafogo, a expectativa é de que a ação comandada pelo general Walter Souza Braga Netto minimize, de alguma forma, a sensação de insegurança que tomou conta da Cidade Maravilhosa.

“Qualquer mudança vale a pena. A situação está crítica. Moro minha vida toda aqui. Nunca o Rio foi tão violento. Espero que a intervenção nos traga paz”, diz Elisabeth Bezerra da Silva, 66 anos, comerciante e moradora da favela do Cantagalo. Apesar de a população desejar a presença ostensiva das Forças Armadas nas ruas, não há militares nas esquinas, como em 2010, após a ocupação do Complexo do Alemão. Falta policiamento. Em uma caminhada de duas horas, na Avenida Atlântica, em Copacabana, foi possível presenciar dois assaltos a turistas. Um estrangeiro que fotograva o belo Hotel Copacabana Palace perdeu a câmera digital para um menor em questão de segundos. Outro turista teve seu celular roubado, da mesma forma, nas imediações da feira de artesanato, que fica no canteiro central da avenida, na altura da rua Miguel Lemos.

“Esperaram o Rio chegar no fundo do poço. O meu bairro era tranquilo, mas como é próximo à Linha Amarela, deixou de ser. Não tem mais lugar seguro na cidade. Não à toa ouço os passageiros mais jovens dizerem que vão sair do Rio”, comenta o motorista de Uber Luiz Carlos Jacob, 61, morador da Abolição, para quem a intervenção já deveria ter ocorrido há muito tempo.

As primeiras declarações do general Braga Netto, no entanto, deram a entender que não haverá ocupação de comunidades pelas Forças Armadas, mas, sim, o fortalecimento das forças policiais do estado e o combate à corrupção nas corporações. Para o coronel da reserva da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) Robson Rodrigues, antropólogo e pesquisador do Laboratório de Análise de Violência (LAV) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a intervenção não é “necessariamente” militar. “Mas criou-se uma expectativa ao colocar um general no comando. Minha preocupação é onde ele vai colocar o Exército, porque ficou patente o objetivo de reduzir a sensação de insegurança. Se for uma coisa cosmética, será a um custo elevado. Sensação de segurança não se mantém por muito tempo quando as causas não são combatidas”, alerta o especialista, ex-chefe do Estado-Maior da PMERJ.

Para as irmãs Amanda Pinheiro, 27, auxiliar de departamento de pessoal e moradora de Campo Grande, e Luanda Pinheiro, 23, analista de processos e moradora de Pilares, a intervenção só vai dar certo no início. “Não vai ter tempo de resolver todos os problemas, que passam por uma polícia corrupta. Mas deve segurar um pouco”, diz Amanda. “Infelizmente, acho que vai voltar tudo como era antes assim que acabar a intervenção”, acrescenta Luanda.

A socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), considera a intervenção uma ação precipitada do governo federal, que pegou as Forças Armadas de surpresa. “Não houve tempo para planejamento. Foi uma medida política, numa estratégia de elevar a popularidade do presidente Michel Temer”, avalia.

Com tanta violência, o Rio corre o risco de perder sua galinha dos ovos de ouro: os turistas. Os argentinos Sandra Sartorelli, 50, engenheira de segurança, e Agustin Calderon, 18, estudante, pensavam em ficar 10 dias na capital fluminense. Quando foram informados da intervenção, decidiram ficar apenas três e aproveitar o resto das férias em Búzios. “Eu me surpreendi porque não vimos militares nas ruas. Aliás, há poucos policiais também”, assinala Sandra.

Atuação nas ruas

Enquanto a população espera perder o medo que está de sair às ruas, com a proteção de forças policiais e militares, durante a intervenção, os líderes de favelas são contra a medida e temem pelos soldados que também são moradores de comunidades. Especialistas estão cautelosos, sobretudo, diante da possibilidade de ampliação dos poderes militares na atuação de combate à guerra urbana.

O secretário-geral da Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj), Filipe do Anjos, explica que lideranças de diversas comunidades estão se mobilizando para questionar e, até mesmo, tentar revogar a intervenção federal. Para isso, criaram uma Comissão Popular da Verdade, buscam abrir diálogo com o interventor general Braga Netto, por meio de reunião oficial, estão confeccionando uma cartilha sobre como agir durante abordagem das Forças Armadas e vão pedir ao Ministério Público Federal para revogar a intervenção.

O sociólogo e professor da Uerj e da Universidade de Brasília (UnB) Arthur Trindade, ex-secretário de segurança pública do Distrito Federal, explicou que várias entidades estão instalando observatórios para controlar possível abuso de autoridade durante a intervenção. “A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e o Cesec já anunciaram observatórios porque todas essas medidas de flexibilização preocupam e é preciso respaldo legal e preparação para enfrentá-las”, disse.

Para o coronel Robson Rodrigues, o crime organizado deve ser combatido com inteligência e perspicácia, não com força abusiva nem com “pirotecnia cosmética”. “Carta branca para agir, com regras de engajamento, mandados coletivos de busca ou o que o valha é um atestado antecipado de incompetência investigativa”, avalia.

No Exército há sete anos, período no qual participou de várias ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Rio de Janeiro, um militar de uma unidade tradicional do Rio, que pediu anonimato, conta a dificuldade de atuar nas operações e cumprir as regras que exigem primeiro os tiros de alerta, depois uso de arma com munição não letal e, só então, atirar para matar. “Durante um tiroteio, não tem isso. Quem vai saber em que ordem foram os tiros, se o primeiro foi para cima ou no traficante armado com fuzil e só depois o soldado atirou para cima? É uma guerra de bandidos armados contra militares armados”, destaca.

O militar lembra que os traficantes agem de forma covarde e usam a população local das comunidades como escudo. “Eles não estão nem aí para a população. Quando são avisados de que estamos entrando, já começam a atirar porque sabem que a gente não pode revidar”, afirma. O militar também explica que as Forças Armadas estão preparadas, sim, para a guerrilha urbana. “Se não somos melhores do que a Polícia em qualidade, somos em quantidade”, diz, alertando que, numa atuação em sete comunidades, enquanto a PM colocou 350 policiais, o Exército entrou com 2,5 mil homens.

Encontro

A Universidade Candido Mendes realiza amanhã, a partir das 10h, o primeiro encontro de organizadores, apoiadores, parceiros, conselheiros e pesquisadores do Observatório da Intervenção, um projeto coordenado e executado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), a partir de um tripé formado por uma rede de entidades apoiadoras; parceiros na coleta de informações; e um conselho de ativistas de favelas e periferias.

POVO FALA

Como você avalia a intervenção federal no Rio?

Renato Pizarro Vianna, 57, engenheiro, morador do Leme

“A situação do Rio nunca esteve tão ruim. Embora eu não ache que a intervenção seja solução, deve melhorar diante do que está hoje. Os bandidos fazem o que querem, agem em qualquer lugar da cidade. Nunca foi tão explícito, tão sem controle. Pode ser que, com a presença do Exército, eles tenham um pouco mais de receio.”

Rafael Silva, 29, barbeiro e morador de Guadalupe

“A segurança precisa melhorar e o Rio tem que reforçar o policiamento. Talvez funcione com militares, que são mais agressivos, mas eles teriam que ir para a rua.”

Adalberto Barbosa, 56, comerciante e morador de Tabajara

“Eu moro em comunidade e posso dizer que a situação piorou muito. A intervenção é necessária. Sou completamente a favor e acredito que vai dar certo. As favelas serão beneficiadas, vão manter as UPPs e os moradores estão bem esperançosos.”

Paulo Aguiar, 65, eletricista, morador de Jacarepaguá

“Onde moro era tranquilo, mas hoje não tem mais lugar, a violência está por todo o Rio. A solução seria mais policiais na rua. Se a intervenção trouxer isso, pode ser que resolva. Mas a gente não sabe até quando. Se o Exército ficasse direto nas ruas, talvez melhorasse.”

Mair Tenório Silva, 54, artesão, morador de Copacabana

“Tem que acabar com a bandidagem. Agora mesmo um turista deu bobeira e levaram o celular dele. Isso é quase todos os dias aqui na feira de Copacabana. Acho que a intervenção vai diminuir um pouco os crimes.”

Paulo Fernando da Silva Filho, 53, auxiliar administrativo e morador de Nova Iguaçu

“A violência no Rio piorou muito. Antes eu achava que a imprensa exagerava. Hoje, está do jeito que falam mesmo. A minha expectativa é de  que, com uma intervenção federal, seja possível combater a corrupção da polícia do Estado. O tráfico virou fonte de renda para a polícia do Rio.”

Vagner Petroso Morais Jesus, 30, contador e morador do Engenho de Dentro

“Os cariocas já têm experiência de Exército na rua. Ajuda, mas depois tudo volta a ser como era antes. A intervenção não é militar, talvez seja alguma coisa diferente, temos que esperar para ver. Eu torço para dar certo.”

Maria Angélica de Souza, 70, comerciante e moradora da Lapa

“A intervenção só vai resolver se as Forças Armadas colocarem tanques nas ruas e nas estradas. Como é que o policial vai fazer blitz e prender cargas roubadas sem equipamento? Se entrar nas favelas, onde é cheio de olheiros, sem estar bem aparelhado, vai morrer, seja policial ou militar.”

Leonardo Ribeiro Guedes de Freitas, 33, farmacêutico, morador de Cabo Frio (RJ)

“Venho com frequência para o Rio porque meus tios moram no Méier e em Del Castilho. Já fui até a festas em favela. Mas meus parentes me relatam que agora a violência está demais. O que eu vejo é muito carioca indo morar em Cabo Frio para fugir da violência. Isso pode complicar a atração de turistas e muita gente vive de turismo no Rio.”

Jarbas Pereira, 66, jornalista, bacharel em direito e morador de Barra Mansa, no interior do Rio de Janeiro

“Quando somos atingidos por alguma coisa, o normal é reagir e fazer algo. Se a polícia do Rio não dava conta, a intervenção foi necessária. Mas eu acho que é difícil as Forças Armadas fazerem um trabalho urbano. Talvez o ideal seria apenas dar o apoio para a Polícia Militar trabalhar. O correto mesmo seria atacar o real problema, que é a falta de educação para o povo.”

Juan Moreira, 24, programador e morador de Madureira

“Meu bairro é perigoso já tem tempo. Ainda não deu para perceber qualquer mudança com a intervenção. Na minha opinião, é uma medida paliativa e temporária. O problema é muito mais complexo. Nosso país é corrupto. A situação só será resolvida definitivamente no dia em que a corrupção for combatida de verdade.”

Martin Mendez, 28, promotor turístico, mora em Copacabana

“A maioria dos turistas não presta atenção nos assaltos. Eles usam cordões de ouro ou dormem na praia e acordam sem suas coisas. Usam celular e câmeras sem cuidado. São alvos fáceis. Os meus clientes, eu alerto. Alguns turistas ainda pedem para visitar as favelas. Hoje, é muito perigoso.”