Valor econômico, v. 18, n. 4407, 22/12/2017. Especial, p. A14.

 

 

ENTREVISTA - Afonso Belivaqua

Alex Ribeiro

22/12/2017

 

 

O economista Afonso Bevilaqua alerta que, a cada mês que passa sem que a reforma da Previdência seja aprovada, é desfeita parte da queda na taxa estrutural de juros da economia conquistada com as medidas adotadas no último ano e meio pelo governo e pelo Congresso Nacional.

A reforma trabalhista e a mudança na remuneração dos empréstimos do BNDES são exemplos de iniciativas que ajudarão o país a manter os juros menores no futuro. "Agora, a demora em fazer a reforma da Previdência vai na outra direção", afirma.

Desde que deixou a diretoria de Política Econômica do Banco Central, em março de 2007, Bevilaqua se impôs um silêncio, que quebra agora, atendendo a pedido do Valor para fazer o diagnóstico dos riscos para a economia brasileira em 2018.

Enquanto no mercado há uma aposta de que, se a reforma da Previdência não for aprovada no ano que vem, qualquer governo eleito em 2018 irá enfrentá-la no primeiro dia de mandato, Bevilaqua diz que não há nenhuma garantia disso. "Certeza de aprovação, não temos", diz. "Parece haver uma separação entre a gravidade do quadro fiscal e o que nós vemos na parte política, que aponta dificuldades de fazer reformas que não são palatáveis do ponto de vista político."

Ainda assim, ele diz ser possível a eleição de um candidato que defenda uma agenda reformista na campanha. "Não pode haver discussões como tivemos nas eleições passadas, em que você ilude a população e depois faz pela metade, ou faz um remendo do que deveria fazer."

Ele vê sinais de consolidação da retomada da economia. "O crescimento de 2018 está razoavelmente encomendado", afirma. "Se olhar para os indicadores de mais alta frequência, você tende a pensar em 2,5%. Se olhar para todo o impulso monetário, tem mais cara de 3%."

Conhecido como conservador quando comandava a diretoria do BC à frente do regime de metas de inflação, Bevilaqua admite a chance de a inflação cair abaixo do piso em 2017, mas não vê maiores problemas. Daqui para frente, diz, é preciso ficar atento para uma eventual surpresa da inflação em relação ao previsto.

No cenário externo, pondera, as condições apertadas do mercado de trabalho nos Estados Unidos podem levar a um aperto mais forte de juros. "E aí pode ser que os mercados se deem conta de que os riscos eram um pouco maiores do que se supunha."

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

 

Valor: A retomada da economia está consolidada?

Afonso Bevilaqua: É uma recuperação gradual, mas, definitivamente, os dados ao longo de 2017 mostram que a economia deixou para trás a recessão terrível que tivemos, causada por um conjunto de fatores, dos quais o mais proeminente foi a aplicação de políticas econômicas totalmente equivocadas. De certa forma, o crescimento de 2018 está razoavelmente encomendado. A economia deve crescer entre 2,5% e 3%. Se você olhar para os indicadores de mais alta frequência, tende a pensar em 2,5%. Se olhar para todo o impulso monetário, tem mais cara de 3%. Para que essa recuperação se sustente, será preciso mostrar de forma convincente que o endividamento voltou a ser sustentável. Isso envolve uma série de questões ao longo de 2018, quando teremos uma eleição presidencial.

 

Valor: Que marca essa recessão vai deixar na economia?

Bevilaqua: É uma recessão muito profunda, persistente, que gerou um contingente enorme de desempregados e provocou uma perda considerável no padrão de vida da população. É um ensinamento para o futuro do que acontece quando você opta por soluções populistas, por políticas econômicas equivocadas.

 

Valor: Há quem argumente que a recessão foi causada por um choque externo e a austeridade fiscal piorou as coisas.

Bevilaqua: Na parte externa, essa afirmação é absolutamente contrária ao que mostram os dados. Durante o mesmo período em que o Brasil teve essas quedas dramáticas no crescimento, várias economias emergentes cresceram a taxas razoavelmente elevadas. Em relação à política fiscal, acho que é um equívoco. A interpretação é exatamente o contrário. A recessão foi causada pela implementação de políticas equivocadas que geraram a percepção de que a política fiscal havia se tornado insustentável. Nessas situações, a primeira coisa que precisa fazer é restabelecer a sustentabilidade das contas públicas. Foi o que foi feito.

 

Valor: A Fazenda diz que os juros altos tiraram 0,8 ponto percentual do PIB de 2017. Qual é a responsabilidade da política monetária na recessão?

Bevilaqua: A política monetária reagiu a uma aceleração da inflação, ocorrida porque a política monetária teve num primeiro momento uma reação menos incisiva do que seria desejável. A partir da mudança de comando no BC, passou a ter uma reação mais adequada. Conseguiu reverter, de forma muito bem-sucedida, a trajetória das expectativas de inflação e fez com que a inflação caísse muito antes do que todos imaginavam. Essa queda na inflação é um dos fatores que fizeram com que a economia tivesse um crescimento maior neste ano, via recuperação de renda real, sustentando a demanda privada.

 

"Há dúvidas legítimas sobre qual é o regime de política econômica que teremos no país a partir do final de 2018"

 

Valor: A inflação muito baixa não é um sinal de que o Banco Central exagerou?

Bevilaqua: Acho que a inflação vai ficar abaixo do intervalo de tolerância, e será a primeira vez nos 19 anos do regime de metas de inflação. Há quatro outras ocasiões que você ficou fora do intervalo de tolerância, todas elas para cima: 2001, 2002, 2003 e 2015. Sem dúvidas, agora é uma inovação. Temos que levar em conta que estamos ainda sob os efeitos de uma recessão extraordinária, tivemos um processo de controle das expectativas e um choque agrícola muito favorável. O natural é que a inflação caia, é natural que fique baixa. Ficar exatamente no piso do intervalo de tolerância, um pouco mais para cima, um pouco mais para baixo, é uma coisa que ninguém tem controle.

 

Valor: Quanto tempo o Brasil pode crescer antes de a inflação voltar a subir?

Bevilaqua: Normalmente, existe incerteza em relação à capacidade ociosa, tem várias formas de tentar estimar essa coisa não observável que é o chamado hiato do produto. Em períodos em que você tem recessões muito grandes e prolongadas, essas incertezas tendem a aumentar. Vamos descobrir ao longo de 2018 como a economia vai reagir e qual é o limite para o crescimento sem que se comece a ver novamente efeitos sobre a inflação.

 

Valor: O que os dados dizem?

Bevilaqua: A inflação no curto prazo está muito comportada, as expectativas estão perfeitamente ancoradas e as projeções do BC têm mostrado uma trajetória benigna. Agora, prever a inflação com prazo tão longo quanto um ano ou dois anos de antecedência é bastante difícil. No passado, quando se estava em momentos de virada no ciclo, como nós podemos estar nos aproximando agora, tantos os analistas quanto o Banco Central subestimaram a evolução da inflação 12 meses, 15 meses, 18 meses à frente, a partir do momento em que você tinha chegado à menor inflação acumulada em 12 meses. Pode ser que dessa vez seja diferente, ou pode ser que a gente descubra que continua difícil prever a inflação com tanta antecedência.

 

Valor: Os juros caíram à mínima histórica. Eles vão permanecer tão baixos?

Bevilaqua: Vamos descobrir já ao longo de 2018. Uma parte dessa queda certamente tem a ver com mudanças estruturais recentes e uma parte tem a ver com o fato de estar no momento do ciclo em que a política monetária é mais estimulativa. Vai depender da taxa de juros de equilíbrio, que depende de várias outras coisas que estão além da política monetária.

 

Valor: As reformas aprovadas pelo governo, como a trabalhista e a mudança da taxa cobrada pelo BNDES, não baixaram essa taxa de juros de equilíbrio?

Bevilaqua: Todas as coisas que foram feitas têm um efeito positivo, ajudam o país a ter juros mais baixos no futuro. Agora, a demora em fazer a reforma da Previdência vai na outra direção. Cada mês que nós passamos sem fazer a reforma da Previdência, em alguma medida se desfaz o efeito positivo que tivemos em função das outras reformas.

 

Valor: Por que os juros futuros precificam uma alta tão forte da Selic entre fins de 2018 e 2019?

Bevilaqua: Há dúvidas legítimas sobre qual é o regime de política econômica que teremos no país a partir do final de 2018, quando for definido qual vai ser o próximo governo. O que o mercado está dizendo é que ainda não tem certeza de que as reformas que foram iniciadas neste governo vão continuar a partir de 2019.

 

Valor: Tem algum exagero nessa precificação?

Bevilaqua: O tempo dirá. 2018 será um ano com muita incerteza.

 

Valor: Há quem ache que a reforma da Previdência é um imperativo e será enfrentada por qualquer governo eleito.

Bevilaqua: Espero que seja enfrentada. Certeza da aprovação, não temos. Na verdade, a reforma da Previdência está há bem umas três décadas na pauta, e até agora o processo político não foi capaz de resolver esse que é o nosso principal problema no lado das finanças públicas. Obviamente que, cada mês que passa, cada ano que passa sem que a reforma seja feita, o quadro piora.

 

Valor: É possível defender uma agenda reformista e ser eleito?

Bevilaqua: São reformas duras, mas em vários lugares do mundo países passaram por reformas tão duras quanto essas. Não há por que não ter esperança que em nosso país também, em algum momento, tenha uma liderança política que seja capaz de explicar para a população que a alternativa a não fazer essas reformas vai nos levar a alguma coisa parecida com o que vimos entre 2014 e 2016, com as pessoas perdendo emprego, com o padrão de vida da população caindo de forma vertiginosa. São discussões que têm que ocorrer. Não podem ser discussões como tivemos nas eleições passadas, em que você ilude a população e depois faz pela metade, ou faz um remendo do que deveria fazer.

 

Valor: Existe o risco de dominância fiscal nas eleições, quando a má situação das contas públicas torna os juros ineficazes para conter a inflação?

Bevilaqua: Falou-se muito em dominância fiscal, mas o que vimos é que a política monetária continua funcionando exatamente da forma que se imagina que funciona. Em meados de 2016, havia um clamor para que o Banco Central ajustasse a meta de inflação de 2017. As pessoas diziam que era impossível ter uma inflação de 4,5% em 2017. Quando o BC, corretamente, foi cauteloso no início do ciclo de política monetária, também sofreu várias críticas. As pessoas diziam que aquele atraso comprometeria de maneira irremediável o crescimento de 2017. O Banco Central resistiu, fez o que achava que tinha que ser feito, que foi o correto, e a política monetária funcionou. Não vejo por que em 2018 não possa continuar funcionando, caso haja necessidade de reverter a trajetória de queda. Tenho certeza de que o BC fará o que for necessário para manter as expectativas sob controle.

 

"Não faz sentido que a maior parcela do gasto seja salário e aposentadoria. Investimento foi completamente reduzido"

 

Valor: O Brasil está mais fortalecido para enfrentar turbulências eleitorais do que em 2002?

Bevilaqua: Em algumas dimensões, estamos numa situação mais confortável. Na parte externa, temos um perfil de endividamento muito melhor do que em 2002. Temos reservas cambiais de quase US$ 400 bilhões, estamos entrando 2018 com uma posição em conta corrente bastante confortável. Agora, na parte fiscal, estamos numa situação muito pior.

 

Valor: Como assim?

Bevilaqua: Estamos numa sequência de déficits primários. Se você olha nos 12 meses terminados em outubro, o déficit nominal é de 9,5% do PIB. Mesmo que se faça a reforma da Previdência que está no parecer do relator aprovado em maio deste ano, continuaremos com déficits primários até pelo menos 2021 e 2022. No cenário mais otimista, que faz a reforma e preserva a operação do teto de gastos, a dívida ainda vai subir e vai chegar a algum valor entre 80% e 85% do Produto no meio desse período até 2026. O nível de gasto como proporção do PIB é bem mais alto. A trajetória fiscal é preocupante e parece haver uma certa separação entre a gravidade do quadro fiscal e o que nós vemos na parte política, que aponta dificuldades de fazer reformas que não são palatáveis do ponto de vista político.

 

Valor: A reforma da Previdência resolve o problema fiscal?

Bevilaqua: Os gastos primários como proporção do PIB praticamente dobraram num período de pouco mais de duas décadas, e o maior responsável é Previdência. Se nós não fizermos nada, esse componente voltará a dobrar como proporção do PIB até 2060. A dívida continuará subindo, e essa é uma situação fiscal insustentável. Mesmo que estabilize o crescimento, mas num nível muito alto, a taxação na economia é muito maior do que nos demais países emergentes, o que dificulta o crescimento da economia. Mesmo que reduza os gastos primários para níveis que possibilitem ter uma tributação menor, deve-se discutir a composição desses gastos. Não faz sentido que a maior parcela dos gastos primários se destine a pagamento de aposentadorias e salários. O investimento foi completamente reduzido. E há a discussão recentemente sobre a equidade. Gasta-se com Previdência, com quem não deveria gastar, e gasta-se pouco com quem deveria gastar. De todas essas questões, a mais urgente é você reverter a trajetória de crescimento contínuo da despesa primária como proporção do PIB.

 

Valor: Qual é o principal risco no cenário externo?

Bevilaqua: É o que todos estão acompanhando com lupa: até o momento, existe a percepção de que a trajetória da inflação na economia americana será mais comportada do que se supunha, e o Federal Reserve (Fed) poderá continuar fazendo esses movimentos graduais de alta de juros ao longo do tempo. Há o risco de que em algum momento você veja a inflação evoluindo de uma forma um pouco mais rápida. Certamente, poderia causar um grande desconforto aos ativos, principalmente de emergentes.

 

Valor: A reforma fiscal de Trump vai obrigar o Fed a reagir?

Bevilaqua: Certamente, o estímulo fiscal está chegando em um momento em que, do ponto de vista da atividade, não é necessário. A economia está crescendo numa velocidade que configura uma utilização plena de recursos. Um estímulo adicional pode fazer o Fed resolver subir os juros mais rápido do que vem sinalizando. Na reunião de dezembro, a sinalização foi de que já teria incorporado os efeitos da política fiscal no cenário. Mas esse é um risco importante.

 

Valor: O desemprego está baixo, mas a inflação não reage nos países desenvolvidos. Quebrou-se a relação entre desemprego e inflação?

Bevilaqua: Eu acho que não. A inflação ainda não apareceu, mas se você continuar com a trajetória no mercado de trabalho que você está vendo, acho inevitável que a inflação apareça.

 

Valor: Os mercados estão precificando adequadamente os riscos de uma alta de juros mais rápida nos Estados Unidos?

Bevilaqua: Essa é uma pergunta difícil de responder. O mercado se acostumou com juros muitos baixos. O Fed, corretamente, vem conduzindo esse processo de uma forma gradual, sinalizando com muita antecedência todos os seus passos. Isso de certa forma está fazendo com que as condições financeiras continuem bastante acomodatícias. Dada a trajetória do mercado de trabalho, em algum momento vai ser necessário que a política monetária comece a se transformar em condições financeiras um pouco mais apertadas. E aí pode ser que os mercados se deem conta de que os riscos eram um pouco maiores do que se supunha.

 

Valor: O tranco seria grande?

Bevilaqua: Se chegarmos a uma situação como essa, pode ter um período mais conturbado.

 

Valor: Há riscos de bolhas financeiras depois desse período de juros muito baixo?

Bevilaqua: A perspectiva de que os juros básicos permaneçam muito baixos por um período ainda maior de tempo certamente leva os agentes a precificarem outros ativos de uma forma que pode ser revista rapidamente.

 

Valor: A mania das bitcoins seria uma preocupação?

Bevilaqua: Eu me preocuparia mais com os mercados de títulos públicos norte-americanos, se estiver pensando em efeitos de uma bolha da economia global.

 

Valor: Novos estudos divulgados pela rede do economista Thomas Piketty mostram que a desigualdade no Brasil aumentou de novo. O que explica um país tão desigual?

Bevilaqua: Uma série de estudos mostra que a educação é um fator muito importante. Nos últimos anos, a desorganização macroeconômica, com a aceleração da inflação, que chegou a quase 11% em 2015, provavelmente também explica por que alguns dos resultados positivos que tinham sido obtidos na década anterior foram revertidos.

 

Valor: Não seria o caso de promover a equidade pela maior taxação dos mais ricos?

Bevilaqua: Há várias coisas no sistema tributário que precisam ser modificadas, mas o problema mais urgente do Brasil é reverter a trajetória explosiva dos gastos. Recorrer ao aumento de impostos enquanto não tiver revertido a trajetória de expansão do gasto primário, que cresceu em termos reais algo como 5% ao ano, significa que no ano seguinte terá que aumentar de novo impostos.