Correio braziliense, n. 19948, 04/01/2018. Política, p. 4

 

Uma Carta sob forte pressão

Alessandra Azevedo

04/01/2018

 

 

CONSTITUIÇÃO, 30 ANOS DE CIDADANIA » Depois de 106 mudanças que foram incorporadas ao texto constitucional desde 1988, hoje, no Congresso, tramitam 1,5 mil propostas de emendas. Especialistas divergem sobre a necessidade de alterações e os riscos de uma “colcha de retalhos”

Para que, em 1988, a Constituição conseguisse incluir nas 315 páginas todos os princípios e direitos que a sociedade demandava, foram necessários quase 20 meses de discussão em oito comissões e 24 subcomissões no Congresso. Todos os assuntos essenciais para um país que acabava de retomar a democracia foram abordados, alguns até exaustivamente, o que não significa que a Carta Magna é perfeita e imutável. Além das 106 mudanças que já foram incorporadas ao texto desde que ele foi promulgado, sendo 99 delas do tipo ordinário — seis foram de revisão, além de um tratado internacional —, tramitam hoje 1,5 mil propostas de emendas à Constituição no Congresso.

Segundo Thomaz Pereira, professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), é natural que grandes temas voltem à discussão a cada ciclo eleitoral. “Certas pautas são constantes e continuarão sendo”, sentencia o especialista. Entre os pontos que são sempre passíveis de mudanças, ele cita a estrutura política, lembrando que a reforma nas regras foi uma das principais discussões em 2017 na Câmara dos Deputados e segue aberta, além das possíveis reformas no sistema tributário e na Previdência Social. “Esses são pontos que serão sempre discutidos e rediscutidos. O interessante é que a Constituição deu estrutura para que esse debate se dê de maneira democrática. E exige alto grau de consenso para que essas mudanças sejam realizadas”, observa.

O especialista lembra que o país passa hoje por uma “virada geracional”. Grande parte da população brasileira não era nascida ou era muito jovem na época da Constituinte. Essas pessoas não participaram ativamente do debate e do momento de transição democrática. “É natural que haja momentos em que a sociedade rediscuta em que medida continua comprometida com as decisões que foram feitas pela geração anterior”, explica Pereira. O momento atual é o de repensar as escolhas feitas pela Assembleia Nacional Constituinte, 30 anos atrás, “nem que seja para reafirmá-las”.

Modalidades

É nesse cenário que surgem discussões que estavam havia anos adormecidas, como a substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo, que foi alvo de discussões acirradas durante a Constituinte. Hoje, o tema é retomado inclusive pelo presidente Michel Temer, ele próprio um constituinte de 1988. Em novembro, ele defendeu que substituir o presidencialismo daria espaço a uma modalidade de governo mais condizente com as crises que assolam o país. “O parlamentarismo é mais estável porque prevê o mecanismo para que as crises governamentais ou os impasses entre Legislativo e Executivo sejam resolvidos sem golpes militares ou traumatismos constitucionais”, disse.

Outros temas que, até pouco tempo, eram vistos como superados voltam à tona. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 181/2017, por exemplo, que trata da licença-maternidade, traz um “cavalo de Troia” que retoma a discussão sobre o aborto. A proposta abre margem para que a interrupção da gravidez seja criminalizada em todos os casos, inclusive os que são permitidos pela CF atualmente: gravidez originada de estupro, anencefalia do feto e risco à vida da gestante. O tema foi discutido em várias ocasiões na Assembleia Nacional Constituinte e volta praticamente com os mesmos argumentos daquela época. Quem é contra evoca a “proteção à vida”, de forma quase sempre religiosa, e quem é a favor discute sobre o problema de saúde pública, que resulta em morte de milhares de mulheres todos os anos — o que já ocorria em 1988.

Ainda pendentes de regulamentações específicas, assuntos como reforma agrária e tributação de grandes fortunas, que foram incluídos na Constituição, são exemplos de questões que ainda não conseguiram o apoio necessário para garantir avanços substanciais. “A reforma agrária, como política governamental, é algo que foi sendo feito por governos diferentes em graus diversos. Tem grande movimento dos sem-terra, que é relevante, organizado e mobilizado nessa pauta. É uma pauta contínua atual, mas que não ganhou, ainda não conseguiu atingir um grau de consenso grande”, explica Pereira.Para o presidente do Sebrae, Guilherme Afif Domingos, que foi um dos 447 deputados federais na Constituinte de 1988, ainda há necessidade de rever a questão tributária. “O grande problema no Brasil é sem dúvida a legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que deveria ser nacional e virou estadual.” O resultado, segundo ele, é que os brasileiros precisam lidar com 27 situações diferentes, o que justifica as mudanças que deverão ser feitas na Constituição sobre o tema, provavelmente ao longo de 2018, no âmbito da reforma tributária.

Excesso

O fato é que “a Constituinte, sozinha, não vai representar um fim em si mesma, uma vez que o trabalho deve vir precedido também de uma legislação ordinária e complementar eficiente”, como disse, em 1987, o relator da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças, o então deputado José Serra (PMDB-SP). Por isso, é natural que seja modificada com alguma frequência, reforça Thomaz Pereira. Para aprovar uma mudança constitucional, é preciso haver consenso de três quintos do Congresso, o que significa apoio de 308 dos 513 deputados e de 49 dos 81 senadores. Mesmo assim, a Constituição de 1988 é líder em atualizações, com 106 emendas e 1,5 mil propostas em andamento. Na visão de Afif Domingos, “porque foi um texto que refletiu o momento, e agora tem que refletir novos momentos”. O presidente do Sebrae acredita que esse excesso se deve, em grande parte, à falta da revisão do texto, que aconteceria cinco anos depois da promulgação.

Para Afif, “tudo o que puder jogar na lei para regulamentar determinados princípios é melhor”. “Não se poderia mexer nas cláusulas pétreas, é claro. Elas estão e devem ficar. Mas o excesso de detalhe acaba criando problema, o que explica a grande quantidade de emendas”, avalia. A Constituição, na opinião do advogado Diego Cherulli, vice-presidente da Comissão de Seguridade Social da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), acabou virando “uma colcha de retalhos”. O ideal seria que ela fosse “integralmente refeita”, acredita. “O excesso de emendas mostra a fragilidade do nosso arcabouço constitucional. E, se ele é frágil, a estrutura jurídica é frágil”, afirma.

Para o constitucionalista Erick Wilson, o alto número de emendas é uma ofensa ao poder Constituinte originário. “É um poder derivado, que, em vez de utilizar o texto que temos hoje, quase que cria outra CF através de emenda. Significa que não se está prestigiando a vontade constituinte original”, critica. “No meu ponto de vista, sempre que tem alguma crise no Brasil, a solução é fazer uma reforma. Eu pessoalmente vejo que é preciso dar efetividade, cumprir o que já se tem. Quando isso acontecer, não precisaremos de tanta reforma quanto se fala. Essas discussões são criadas muito mais para dar uma satisfação em momento de clamor da sociedade”, acredita Wilson.

Nesse sentido, Pereira ressalta que há muitas mudanças que podem ser feitas sem tocar na Constituição, por normas legislativas, de forma mais prática. Há, para ele, uma questão problemática de aplicabilidade da legislação. “Às vezes, o que falta é efetividade das normas que já existem”, acredita. De fato, os números são impressionantes, mas propor uma PEC diz pouco sobre a probabilidade de ela ser aprovada, acrescenta Thomaz Pereira. “Sugerir uma alteração, muitas vezes, é maneira de sinalizar uma posição política sobre determinado tema. Muitas dessas propostas nem sequer passarão pela primeira comissão, outras não chegarão a ser votadas em plenário”, pondera.

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ENTREVISTA - Marco Aurélio Mello

Renato Souza

 

 

"É preciso amar as leis, levando-as a sério"

Aos 71 anos, o ministro Marco Aurélio Mello é um dos 11 guardiões da Constituição no Supremo Tribunal Federal(STF). O jurista chegou ao posto apenas dois anos após a atual Constituição ser aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte. Com 27 anos de atuação na corte, o magistrado é respeitado e conhecido por defender o texto constitucional.

Para o jurista, a Constituição não é respeitada como deveria. Outras ações que incomodam o magistrado são as persistentes tentativas de aprovar Propostas de Emenda à Constituição e alterar os artigos que regem a vida de todos os brasileiros. Quando se trata do respeito aos artigos constitucionais, o decano não tem medo de ir contra seus colegas de plenário e destacar o papel da corte em proteger a democracia. O ministro destaca nesta entrevista que é preciso “amar as leis e a Constituição”.

A Constituição Federal atrende a realidade que o Brasil vive hoje?

Que atende, atende. Nós precisamos parar com esse credo de que poderemos ter dias melhores no Brasil mediante novas leis e novas constituições. O que precisamos é amar um pouco mais as leis e a Constituição Federal. O Brasil tem uma legislação baseada em critérios que respeitam o povo, que compreendem os mais diversos setores da sociedade. A Constituição tem que ser executada, experimentada. Temos que parar com essa história de querer mudar a Constituição sempre que surge algum fato que chama mais a atenção. Não podemos querer criar uma lei para cada circunstância.

Desde que foi promulgada, a Constituição recebeu várias emendas. Essas mudanças não são necessárias?

Atualmente o nosso texto constitucional já virou um periódico. O conteúdo aprovado na década de 1980 já foi emendado mais de 90 vezes.

Temos diversos artigos que ainda não foram regulamentados, como direito de greve dos servidores públicos e até questões de ordem política. Isso é um entrave no avanço dos direitos e garantias em território nacional?

A regulamentação, sim, é necessária. O Congresso tem que atuar regulamentando. Quando os parlamentares não fazem esse trabalho, de se articular para criar as leis que vão regulamentar a prática do texto da Constituição, essa tarefa sobra para o Judiciário.

Tendo em vista que a Constituição é a lei máxima do país, ela é respeitada tanto pelo governo quanto pelos demais setores da sociedade?

Muito pouco. Precisa ser amada e levada mais a sério.

Então temos um grande problema a ser resolvido...

Eu insisto que o que ela precisa é ser acionada mais. Temos que levar profundamente para a sociedade o que diz a nossa Carta Magna. O poder público, os cidadãos e todas as instituições devem agir com base estritamente ligada ao que diz a nossa lei máxima.

Podemos esperar um futuro melhor para o país com base no texto constitucional que temos hoje?

Quando se respeitar totalmente o texto constitucional, teremos um país com menos problemas. A lei já existe, o que é necessário é cumprir e colocar em prática o que está previsto nos artigos.