O globo, n.30822 , 26/12/2017. EDITORIAL, p. 12

Salvo-conduto para o crime

26/12/2017

 

 

Pretende-se, de fato, manietar a Justiça, o Ministério Público e a Polícia Federal

A proposta de lei sobre abuso de autoridade em tramitação no Congresso tem a marca indelével de vingança corporativista contra a Operação Lava-Jato. São palpáveis as digitais de líderes do PMDB, PSDB, PT, PP, PR e de outros partidos envolvidos, em níveis variados, nas investigações sobre corrupção e lavagem de dinheiro em contratos de obras públicas federais e estaduais.

Sob o pretexto de aperfeiçoar mecanismos de defesa da sociedade contra abusos de agentes públicos, pretende-se, de fato, manietar a Justiça, o Ministério Público e a Polícia Federal nos inquéritos em que políticos com e sem mandato apareçam como suspeitos.

A receita é conhecida. Foi aplicada com relativo êxito na Itália, nos anos 90 do século passado, para desestruturar investigações da Operação Mãos Limpas que expôs a a corrupção endêmica no Legislativo, Executivo e também no Judiciário.

Um bom projeto de lei contra abusos de autoridade estaria em sintonia, primordialmente, com a vida real dos habitantes das áreas urbanas detentoras dos maiores índices de violência policial. Seria adequado ao país do “você sabe com quem está falando?” e da carteirada, de que se valem tanto a polícia, que invade residências sem mandado judicial e assassina escudada nos chamados autos de resistência, como também representantes do Judiciário e do Ministério Público, hoje sob escrutínio da sociedade. Não é o caso da proposta em andamento no Congresso.

Ela faz parte, sim, de um pacote legislativo com objetivo central de instituir uma espécie de salvo-conduto para a criminalidade política. Há uma miríade de iniciativas nessa direção na Câmara e no Senado.

Uma das mais recentes teve origem na bancada petista e tem como alvo o desmonte do instituto da colaboração, ou delação, premiada — instrumento sem o qual dificilmente a Lava-Jato existiria. Entre outros aspectos polêmicos, esse projeto do PT limita até mesmo o direito de defesa — que é constitucionalmente garantido — dos eventuais candidatos à colaboração com a Justiça.

Os projetos de lei sobre abuso de autoridade e de desmonte das colaborações premiadas pertencem à categoria de propostas legislativas aberrantes e, como tal, não podem e não deveriam prosperar no Legislativo, que tem um terço dos parlamentares em papel de destaque nos inquéritos conduzidos pelo Supremo Tribunal Federal.

Isso é legislar em causa própria. Contraria o interesse público, inclusive na publicidade dos atos judiciais. Também, configura ameaça às normas republicanas de atuação do Judiciário, Ministério Público e polícia.

Argumentos sobre um suposto “Estado policial” ou “regime de exceção” são pífios, por óbvio. Sua repetição apenas expõe fragilidades na defesa de interesses indisfarçáveis, por vezes inconfessáveis, que acabam convergindo para a preservação da marginalidade (...)

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Punitivismo policialesco

CARLOS ZARATTINI

26/12/2017

 

 

Chega de invasões de universidades e de casas sem autorização judicial. Chega de atrocidades

Não faltam exemplos de abusos de autoridade no Brasil, em todas as instâncias de poder. De uns tempos para cá, os casos aumentaram. Agentes públicos que deviam servir estritamente a lei a violam e afrontam a Constituição. O resultado é que os direitos individuais são massacrados e cria-se uma base para uma sociedade autoritária e antidemocrática.

O melhor exemplo é o da trágica morte do reitor da Univer- sidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Foi levado ao suicídio depois de ser vítima de uma investigação que envolvia seu antecessor. Diante dos abusos sofridos, protestou tirando a própria vida. A operação que o levou à morte foi conduzida de forma irresponsável e midiática por uma delegada da Polícia Federal, uma juíza e outros agentes públicos.

A Lei de Abuso de Autoridade vigente no país foi editada em 1965, durante o governo militar. Passados mais de 50 anos, hoje é inócua. Precisa ser revista. Punir abusos de autoridade no Brasil é única forma de protegermos as liberdades individuais.

Os abusos alcançam, potencialmente, todos os segmentos. Se não forem contidos, teremos uma estrutura autoritária em que o Estado sobrepujará os direitos dos cidadãos. Além de conduções coercitivas e atitudes truculentas de agentes do Estado, tornaram-se comuns manifestações públicas e fora dos autos de juízes, desembargadores e ministros sobre casos que podem vir a julgar, o que afronta o pressuposto de imparcialidade. Essas atitudes devem ser coibidas.

Se há leis para punir abusos praticados pela imprensa e até para o cidadão que ofender funcionários públicos, por que não uma contra os abusos de autoridade? Se certas autoridades extrapolam os limites da lei ou mesmo a ignoram, fazendo suas próprias leis, cabe ao Estado a aplicação de mecanismos que coíbam essas práticas.

Vivemos um verdadeiro punitivismo de um Estado policialesco, que impõe a todos a condição prévia de criminosos, em que cabe à vítima provar sua inocência. Já não podemos mais presenciar os abusos das conduções coercitivas sob qualquer pretexto, com espetacularização midiática que mancha a honra das pessoas. Chega de invasões de universidades e de casas sem autorização judicial. Chega de atrocidades cometidas por setores do Judiciário em nome do combate à corrupção; não se combate ilegalidade com ilegalidade.

Ressalte-se de que não se trata de ameaça ao Judiciário nem ao Ministério Público. O princípio é criar barreira aos agentes de Estado que acham que podem agir à margem da lei. É preciso respeito à legislação. Fora disso, (...)