Título: À espera de uma ação do Estado
Autor: Sassine, Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 10/02/2012, Brasil, p. 7

Especialistas em doença de Chagas avaliam que o governo deve integrar ações de vigilância, com a retomada do controle dos vetores e da atenção básica à saúde dos pacientesNotíciaGráfico

A saúde da família do agricultor Otino Alves dos Santos, de 46 anos, depende exclusivamente de uma reação do Estado brasileiro. Otino pode ser considerado, até agora, um homem de sorte. A casa de adobe onde mora com a mulher e os nove filhos foi erguida há 14 anos, na região da Fazenda Extrema, em Posse (GO), divisa com a Bahia. O imóvel é praticamente o mesmo desde então.

Não há, nas cercanias, uma casa tão suscetível à presença de barbeiros, vetores da doença de Chagas, quanto a de Otino. Pouquíssimos vizinhos escaparam da doença. O agricultor diz que ele, a mulher e os nove filhos não pegaram. Seus pais são portadores do mal de Chagas. "Eu sei que houve um projeto para uma casa nova, que o dinheiro veio. Mas devem ter consumido ele por aí", diz Otino.

Quase seis anos depois de a Organização Mundial de Saúde (OMS) ter certificado o Brasil como país virtualmente livre do principal vetor da doença de Chagas, o barbeiro Triatoma infestans, Otino, a mulher e os filhos continuam expostos a outros vetores. Os pais do agricultor são doentes crônicos sem qualquer tipo de assistência e acompanhamento médico. A família desconhece qualquer ação do governo, nas três esferas.

O sumiço do Estado e a invisibilidade dos doentes de Chagas foram mostrados pelo Correio em série de reportagens publicadas desde domingo. Para Otino e milhares de outras famílias brasileiras não dependerem apenas da sorte, o governo tem a obrigação de integrar ações de vigilância, com a retomada do controle dos vetores, e de atenção básica à saúde, com prioridade no atendimento aos doentes crônicos, conforme estudiosos da doença de Chagas ouvidos pelo Correio. A certificação conferida ao Brasil não garantiu o fim das transmissões vetoriais e, muito menos, o fim da doença, segundo esses pesquisadores.

Deputados que integram a bancada da saúde na Câmara vão propor a realização de audiências públicas para discutir a situação de abandono dos doentes de Chagas. Eles pretendem ouvir o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, sobre as ações da pasta no combate ao mal de Chagas e sobre a política de governo para o tratamento dos doentes crônicos. Em entrevista ao Correio na quarta-feira, Padilha garantiu que a prioridade da pasta no que diz respeito à doença de Chagas é o atendimento aos pacientes crônicos que desenvolveram cardiopatias, megaesôfago e megacólon.

Procuradores da República que atuam na área de saúde afirmam que o Ministério Público Federal (MPF) poderá abrir inquéritos para apurar a falta de assistência aos doentes de Chagas. "Essa questão será levada para a reunião do grupo de trabalho. É preciso chamar os órgãos públicos para a discussão", afirma a procuradora da República no Rio Grande do Sul Suzete Bragagnolo, que integra o grupo de trabalho de saúde da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), da Procuradoria-Geral da República (PGR). "O MPF tem legitimidade para cobrar a execução de políticas pelo Ministério da Saúde", reforça o procurador da República Peterson Pereira, que atua no 2º Ofício de Cidadania no Distrito Federal.

Retorno do vetor O presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), Carlos Henrique Nery Costa, afirma que o governo brasileiro precisa manter a vigilância para saber onde estão reaparecendo os vetores da doença de Chagas, entre eles o Triatoma infestans. "Se os vetores voltarem com força, o Brasil perde a certificação (da OMS)", diz Carlos Henrique.

Segundo ele, foi "constrangedor" o fato de o Brasil ter paralisado a produção do medicamento para a doença de Chagas, o benznidazol, e ter fracassado na entrega da droga para outros países. "O Brasil deve assumir a posição de maior pesquisador em doenças tropicais do mundo."

Na Câmara dos Deputados, o entendimento é de que os programas de combate à doença de Chagas estão parados por contingenciamento de recursos. "As reportagens mostraram pessoas morrendo por complicações de Chagas a duas horas de Brasília. A tendência é que essa situação se agrave", afirma o deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Saúde. "Vou propor uma audiência pública para que o Congresso discuta a questão", diz. "As reportagens dão um motivo forte para uma audiência e para ouvir o ministro", ressalta o deputado Osmar Terra (PMDB-RS), ex-secretário de Saúde no Rio Grande do Sul.

Repercussão

"O Brasil tem de manter a vigilância sobre o avanço de barbeiros e oferecer qualidade na prevenção e no atendimento aos doentes crônicos" Carlos Henrique Nery Costa, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical

"Não se pode baixar a guarda, a vigilância deve continuar. A doença de Chagas é extremamente complexa, com vários vetores e necessidade de detecção dos casos" Lúcia Maria Brum, consultora técnica em doenças emergentes dos Médicos Sem Fronteiras no Brasil

"Vamos entrar em conversação com o Ministério da Saúde, com a possibilidade de instauração de um procedimento para maior atenção a essas pessoas" Suzete Bragagnolo, procuradora da República integrante do grupo de saúde da Procuradoria-Geral da República (PGR)

"O Ministério Público Federal pode cobrar do Ministério da Saúde a execução das políticas para os doentes de Chagas. A deficiência está na execução" Peterson Pereira, procurador da República do 2º Ofício de Cidadania do DF

"A frente de saúde na Câmara nunca discutiu sobre doenças negligenciadas. As reportagens vão servir de motivação. O que as reportagens mostraram é assustador" Darcísio Perondi (PMDB-RS), deputado federal e presidente da Frente Parlamentar da Saúde

"A doença de Chagas não é uma prioridade do Ministério da Saúde, mas municípios e estados também falham no combate a endemias" Osmar Terra (PMDB-RS), deputado federal e ex-secretário de Saúde no Rio Grande do Sul