Um acerto de contas com a História

Chico Otavio

06/05/2017

 

 

Jornalista reconstitui trajetória dos pais, Míriam Leitão e Marcelo Netto, presos e torturados nos porões da ditadura

 

Ao ler a reportagem sobre o coronel da reserva Paulo Malhães, o “Doutor Pablo” dos porões da ditadura militar, a jornalista e escritora Míriam Leitão teve uma crise de choro. Naquela edição do GLOBO, de 25 de junho de 2012, Malhães assumia a criação da “Casa da Morte”, o macabro centro de tortura do Exército em Petrópolis. Míriam lembra que, na época, chegou rondar a mesa de um dos autores da reportagem, na redação, mas não conseguiu fazer o desabafo que só agora torna público: Malhães é o mesmo Pablo que a torturou com uma jiboia, em 1972, quando ela e o então marido, Marcelo Netto, ficaram presos no Espírito Santo.

A identidade de torturadores de Míriam e de Marcelo é uma das revelações de “Em nome dos pais”, livro do jornalista Matheus Leitão, filho do casal, que será lançado amanhã pela Intrínseca. Para reconstituir a trajetória dos pais nos anos de chumbo, o autor levou dez anos analisando documentos, ouvindo excompanheiros de militância e, principalmente, localizando personagens que, 45 anos depois, ainda representam dor e repulsa na família.

A JIBOIA DE PABLO

Dois dias depois de ser presa com Marcelo e levada para o 38º Batalhão de Infantaria, em Vila Velha, em 3 de dezembro de 1972, Míriam foi submetida a uma sessão de torturas que começou com uma sequência de chutes e socos — um deles abriu sua cabeça — e terminou numa sala escura, nua por horas, na companhia de uma jiboia, trazida dentro de uma caixa de isopor por “Pablo”, o oficial que comandava a equipe de torturadores. Aos 19 anos, Míriam estava grávida de um mês do primeiro filho.

“Míriam ficou imóvel. Seu corpo doía, o suor escorria, ela tremia por dentro e repetia para si mesma: 'Eu não posso me mexer'. No escuro não via o réptil, mas sabia que ali estavam apenas as duas: ela e a cobra, que fora posta a pouca distância dos seus pés, antes que o grupo do Dr. Pablo saísse às gargalhadas daquela sala sinistra”, narra Matheus. O autor disse que, até hoje, não se sabe o motivo das risadas, mas “uma possibilidade é o nome da cobra, o que se descobriu muitos anos depois. A jiboia também se chamava Míriam”.

Em “Xadrez imaginário”, um dos capítulos mais dramáticos do livro, Matheus revela que a mãe teve a certeza de que o homem da cobra era Malhães depois de ver as fotos dele estampadas nos jornais em 2014, quando o coronel, ex-agente do Centro de Informações do Exército (CIE), assumiu, em depoimento para a Comissão Nacional da Verdade, a captura, tortura, morte e desaparecimento de adversários do regime. “Ao envelhecer, ele mantivera os cabelos fartos dos quais minha mãe se recordava e adquirira uma bizarra semelhança com o ditador iraquiano Saddam Hussein”, escreveu Matheus. Malhães seria assassinado 30 dias depois de depor.

Mas o autor não se contentou apenas com os relatos da mãe. Ao obter a Folha de Alterações de Malhães, espécie de currículo militar, ele constatou que, entre 4 de outubro e 31 de dezembro de 1972, o militar desempenhou funções na 2ª Seção do I Exército, justamente a unidade encarregada de promover a repressão às organizações de esquerda armada. A certeza foi reforçada pelo depoimento de outra vítima, Jorge Luiz de Souza, preso no mesmo dia de Míriam e Marcelo. Submetido a sessões de choque pela equipe de Pablo, Jorge Luiz teve duas paradas cardíacas, sendo ressuscitado pelos torturadores.

Estudante do quarto ano de Medicina, Marcelo Netto era um promissor quadro do PCdoB capixaba em 1972, auge da repressão sangrenta desencadeada pelo governo do presidente Médici. Conheceu Míriam, jovem recémchegada de Caratinga (MG), durante um show do cantor Sérgio Ricardo. Engataram um namoro e, logo a seguir, passaram a morar juntos numa casa de um bairro pobre de Vitória. Na condição de líder estudantil, encabeçou a campanha por um pronto-socorro vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo. A prisão era inevitável.

Na luta clandestina contra o regime, o líder local do PCdoB, Foades dos Santos, criou um codinome para Marcelo; “Mateus”, o mesmo que o estudante de Medicina daria futuramente ao segundo filho. Míriam passou a ser identificada como “Amélia”. Mas foi esse mesmo Foedes, mentor do casal, quem os entregou à repressão. O livro detalha o esforço de reportagem de Matheus para localizar o delator, descoberto na região serrana do Espírito Santo. Diante do homem que traiu os pais, o autor arranca dele um pedido de perdão.

— Se o senhor encontrasse hoje a minha mãe, o meu pai, o Jorge Luiz, o Lincoln Cordeio Oest (dirigente do PCdoB morto pela repressão). Haveria um pedido de desculpas pela entrega do nome deles? — pergunta Matheus.

— Pedido de desculpas é pouco. Pediria perdão mesmo. Tenho realmente muita tristeza de ter entregado esses companheiros.

Foades disse que, se soubesse que seria preso e torturado, sendo obrigado a delatar os companheiros para não morrer, não teria mergulhado na luta armada do período: “A gente pensava que ia aguentar, mas na hora do pau lá, meu filho, não depende só de querer aguentar, não. Depende de você ter estrutura”, admite.

Outro momento marcante está descrito em “Frente a frente com o torturador”, capítulo em que Matheus narra como localizou e entrevistou Antônio Waneir Pinheiro Lima, o “Camarão”, comparsa do Doutor Pablo que ganhou a alcunha pelo tom avermelhado da pele. Míriam e outras vítimas da equipe de Paulo Malhães lembram bem do torturador de pele vermelha, que seria apontado anos depois por Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, como o carcereiro que a estuprou em mais de uma ocasião.

Encontrado por Matheus em sua casa em Araruama, na Região dos Lagos, Camarão admitiu ter atuado na Casa da Morte, mas negou ter participado diretamente de torturas contra Míriam Leitão no Espírito Santo, embora não negue que outros militares recorreram à violência:

— Se eu disser que foi uma ditadura, iria contra os meus princípios. Não vi ditadura, vi uma tomada de poder, que teve suas reações violentas para combater algumas ações. Toda a ação tem uma reação. Eu acho que teve reação violenta combatendo a ação (da esquerda). Porque, se você fizer uma coisa sem guerra, sem violência, (só) conversa, como acontece aí na Câmara hoje... Você acha que é isso? Ou não? Matheus já não teve a mesma oportunidade com outro militar acusado de torturar o casal. Durante anos, ele era conhecido apenas como “capitão Guilherme”, chefe da 2ª Seção (Informações) do 38º Batalhão de Infantaria de Vila Velha. Foi ele, por exemplo, o autor do tapa que fez um suco de laranja voar as mãos de Míriam Leitão, quando ela tentava com o líquido amenizar as horas de jejum enfrentadas nos primeiros momentos da prisão. Guilherme não fazia parte da equipe de Pablo, formada por torturadores do CIE, mas permitiu maus-tratos sistemáticos aos presos políticos que passaram pela unidade capixaba. Com a ajuda de servidores do Superior Tribunal Militar (STM), descobriu que o torturador chamava-se Pedro Guilherme Ramos, mas que já havia morrido. Não foi fácil para Matheus escrever em primeira pessoa “Em nome dos pais”. Marcelo, por exemplo, sempre foi contido ao descrever o sofrimento que passou nos cárceres do regime. O próprio autor teve de conter a repulsa diante de pessoas que haviam causado um mal profundo à sua família. Portas se fecharam para o seu trabalho, especialmente as de unidades militares por onde Marcelo e Míriam passaram: — Foi sofrido, difícil. Em alguns momentos, angustiante. Lamento muito, tantos anos depois, que ainda existam vetos do Exército. Veto à minha entrada nos quartéis. Veto ao documento boletim interno que pode me dar os nomes dos militares que entraram no 38º Batalhão de Infantaria no final de 1973. Matheus Leitão lamenta que, até hoje, o Exército não tenha apresentado um pedido de desculpas pelos excessos comedidos em seus porões. No livro, ele reproduz frase do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na qual, em síntese, diz que o direito ao esquecimento pertence às vitimas e aos parentes das vítimas. No que diz respeito aos algozes, é o direito à verdade, diz Janot.

O globo, n.30588 , 06/05/2017. País, p. 8