CHUVA DE VENENO

 

11/07/2016
André Borges
Leonencio Nossa
Dida Sampaio
Hélvio Romero

 

O fazendeiro Carlos Raposo, de Nova Guarita, norte de Mato Grosso, contratou uma empresa aérea para lançar agrotóxico nas terras do Assentamento Raimundo Vieira III, vizinho de sua propriedade. Assentados cortavam palha de fazer vassoura quando viram um avião amarelo com letras azuis se aproximar, em voo baixo.

Pensaram que era uma aeronave da Polícia Federal, que vinha resolver os “problemas”. O avião passou por eles, aumentou a altitude e deu novo rasante.

Daí veio um cheiro forte. “É veneno”, gritaram Rudinei Ribeiro, de 36 anos, e sua mulher, Creuza da Silva Dutra, de 49. O aparelho despejou agrotóxico nos agricultores, nos telhados das casas e nas plantações.

Creuza telefonou para a amiga Silvana Mota, de 32, que trabalha num pequeno posto de saúde da região. Ao chegar de moto ao assentamento, Silvana ainda viu o pessoal molhado. O agricultor Dalmiro estava deitado num banco, com tontura. Creuza gritava de dores no estômago e ardência nos olhos. Silvana pedia que ninguém tomasse água, para não espalhar o veneno pelo corpo. Seis crianças que estavam dentro das casas foram levadas para o posto de saúde. Vomitavam, reclamavam de dor de cabeça. Horas depois, chegou uma ambulância para levar o agricultor Edenilson Evaristo, de 45 anos, que sofria de problemas de pulmão.

Um morador telefonou para a Polícia Federal. Um agente teria recomendado: “Moço, põe um pano na cabeça e tira foto do avião”. Nem precisou. A polícia foi para o pequeno aeroporto de Alta Floresta e achou a aeronave.

Piloto e fazendeiro foram presos. Eles saíram da delegacia após pagarem fiança. Ao retornarem às plantações, um dia depois, os agricultores perceberam que as folhas de milho, mandioca e melancia tinham sido atingidas. O bananal também estava comprometido. Técnicos confirmaram a perda.

“A mandioca deu depois uma casca preta, sem nada dentro”, lembra Edenilson. Eles tiveram de recomeçar a lavoura em outro lugar. A área atingida pelo veneno foi abandonada. A prefeitura suspendeu a compra de hortaliças para escolas.

A chuva de veneno ainda arrasou mudas de árvores nativas doadas pelo Instituto Ouro Verde, organização que recupera áreas degradadas na Amazônia.

Até 1995, a área do assentamento tinha angelim, champanhe, mesca, mogno, cedro, marupá, itaúba, castanheira, pequizeiroda- amazônia, tauru, timbori, canelão e canela-ferro. Grileiros que ocupavam a propriedade, anos antes, derrubaram boa parte da mata nativa. A itaúba, madeira dura, por exemplo, só restou nos troncos das cercas.

Ao Estado, Carlos Raposo admitiu ter contratado a empresa de aviação para jogar veneno.

Ele disse que os assentados, quando viram a aeronave, correram para tirar foto e aí foram atingidos.

Os relatórios e ele próprio, no entanto, ressaltam que o veneno foi jogado na terra dos vizinhos. “O pessoal ficou debaixo do avião para tirar fotografia com o celular”, afirmou.

A disputa entre as 23 famílias do assentamento do Incra e o fazendeiro é pela área ocupada por elas, de 409 hectares, o equivalente a 400 campos de futebol. É uma terra avaliada em cerca de R$ 6 milhões por corretores de imóveis de Nova Guarita.

Em 1998, a família de Raposo chegou ao município e comprou 143 hectares. A Fazenda Baixa Verde é vizinha à área da União de 409 hectares, onde o Incra instalaria o Assentamento Raimundo Vieira III. Raposo entrou com processos na Justiça para garantir a posse dessa área e receber pelas “benfeitorias” que teria instalado lá – no caso, cercas. Como ele nunca teve título da terra, não construiu casas ou currais.

Raposo admite que sempre soube que a área pertence à União. Mas reclama da posse. “É só perguntar aos vizinhos se não estou aqui desde 1998. Há muito tempo, o pessoal do Incra me disse: ‘Aqui, documento é foice e enxada’. O que dói é ouvir do Incra hoje que eu sou invasor de má-fé.”

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Gleba criada na ditadura militar é foco de conflito

 

11/07/2016

 

Quando abriu a BR-163, estrada que liga Cuiabá a Santarém, nos anos 1970, a ditadura militar desapropriou e considerou “área de influência” um trecho de 100 km de um lado a outro da rodovia.

Era ali que seriam assentadas as famílias que vinham do Sul, Sudeste e Nordeste em busca de terra.

Militares demarcaram uma série de glebas – grandes áreas – onde instalariam os Projetos de Assentamentos (PAs), mas deixaram o poder sem terminar o asfalto da rodovia nem consolidar os assentamentos. Uma dessas glebas foi a Gama, hoje localizada em Nova Guarita, no norte de Mato Grosso, onde existiam quatro assentamentos.

As terras da União na “área de influência” viraram territórios de conflitos. Nos anos 1980, a malária se juntou à bala de grileiros das redondezas e ajudou a mandar embora as famílias dos assentamentos da gleba. Sem títulos ou negociações com o governo, grileiros destruíram as cercas das pequenas propriedades e colocaram as deles.

Assentados que permaneceram na terra são responsáveis pelo leite e pelas verduras e hortaliças vendidos em cidades da região.

O forte da economia se tornou o gado de corte. Mas não há nem sequer uma propriedade às margens da rodovia em situação ambiental legalizada, seja ela uma fazenda, serraria ou atividade de manejo florestal.

Nos últimos anos, com a nova legião de famílias sem terra, o Incra começou a demarcar novos assentamentos na Gleba Gama, em boa parte invadida por grileiros. O prefeito de Peixoto de Azevedo, Sinvaldo Santos Brito, foi um dos que ocuparam pedaço da gleba. O Incra decidiu então priorizar áreas de invasões recentes e sem benfeitorias para atender famílias pobres que vivem de trabalhos temporários na lavoura de soja e estavam em barracas no Acampamento Renascer.

 

Violência. Inspirado em novela da TV Globo sobre o cacau no sul da Bahia, o Renascer foi cenário de sete mortes a partir de 1995. Só após a matança o Incra instalou os Assentamentos Raimundo Vieira I, II, III e IV – referência a um dos mortos no acampamento. Quando técnicos da Eletrobrás apareceram para colocar postes do Programa Luz para Todos no Raimundo Vieira III, tiveram de correr.

Pessoas ligadas ao fazendeiro Carlos Raposo não permitiram que os postes fossem instalados.

Raposo e outros 15 fazendeiros têm processos na Justiça para reivindicar parte da Gleba Gama. A terra titulada não pertence à Gama.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Nem cercas de assentamento do Incra escapam

 

11/07/2016

 

A agricultora Nair Antônia da Costa, de 38 anos, foi acordada pela filha Jéssica, de 18. O marido, Edenilson Evaristo, de 45, continuou dormindo no barraco construído no assentamento do Incra Raimundo Vieira III, em Nova Guarita. Pelas frestas, elas viram vultos que se tornaram imagens nítidas de homens a partir dos faróis de carro.

Eles cortavam as cercas com motosserras. “Eu disse para a Jéssica: ‘Vamos ficar quietas. Não acorda seu pai, deixa ele dormindo’.

O Edenilson ia ficar nervoso e seria pior.” A filha não queria aceitar a ordem. “Não é justo destruírem cerca do pai”, disse.

No dia seguinte, Edenilson foi ordenhar vacas. Seus animais, num total de dez, tinham escapado.

As cercas que montou estavam destruídas. Ele voltou para casa e começou a chorar.

“Quando acordei para tirar leite, vi minhas cercas cortadas. Fui para a Polícia Civil, que mandou eu procurar a Federal, porque a terra é do Incra. A Federal disse que isso não podia ocorrer, mas ninguém foi preso até hoje.” Edenilson levou os animais para o curral de um conhecido, que passou a ficar com o leite em troca do capim que as vacas comem. Sem leite, a família passou fome.

Laércio Santos de Abreu, de 30 anos, deu falta de uma vaca que estava para dar cria. O animal era um dos 13 que comprou com dinheiro do trabalho na soja. Numa manhã de outubro, ele percebeu que a cerca perto do pequeno curral tinha sido destruída. A vaca só podia estar na fazenda vizinha, avaliou. Ele tinha de passar por homens armados do lado de lá. Preparou o cavalo, pôs Lorena, a filha de 3 anos, na frente. A mulher, Floriana de Oliveira, de 27, foi na garupa com outro filho, Carlos Eduardo, de 10. Laércio e a família foram buscar o animal. Antes de passarem pela cerca, um guaxeba parou o grupo: “Você pensa que vai aonde?” Laércio respondeu: “Rapaz, vocês cortaram minha cerca e eu quero meu gado”. “Aqui não tem gado de ninguém. Você não pense que eu ando sozinho, porque eu não ando sozinho”, retrucou o guaxeba. “Só saio daqui com minha vaca”, disse Laércio.

Era segunda-feira. Diante da cena insólita de homem com mulher e crianças, o pistoleiro deu um prazo: “Você tem até quarta para achar sua vaca. Depois, não me responsabilizo por você nem por seus meninos.

Você não deveria trazer criança para cá.” Laércio insistiu: “Vou procurar a vaca até o dia em que achar”. Mas não localizou o animal. Ele é um dos assentados do Raimundo Vieira III.

 

O Estado de São Paulo, n. 44827, 11/07/2016. Política, p. A7