O globo, n. 30232, 15/05/201. Política, p. 10

Após denúncia de abuso sexual contra ex-senador, vida de medo

Nezinho Alencar, de Tocantins, é acusado de ter violentado filhas de vaqueiro
Por: RENATA MARIZ

 

RENATA MARIZ

renata.mariz@bsb.oglobo.com.br

 

Era Dia Mundial do Trabalho. Naquele 1º de Maio do ano passado, a sorte parecia acenar para o homem de 33 anos, que deixaria o serviço na ordenha do leite para ser vaqueiro na propriedade de um dos fazendeiros mais poderosos da região, ao norte de Tocantins. Rascunhado em duas folhas de papel, o contrato de trabalho se resumia ao trato de ganhar um bezerro a cada oito que vingassem. Animado com a oportunidade, ele jamais poderia imaginar que sairia dali com escolta da Polícia Federal, depois de denunciar que o patrão, um ex-senador da República, abusou sexualmente de suas filhas, de 6 e 9 anos. Incluída em um programa governamental de proteção a testemunhas há menos de dois meses, a família vive agora refugiada com medo.

Em local previamente marcado e sob a vigilância de policiais, O GLOBO esteve com parte da família que está protegida. Ao todo, dez pessoas foram incluídas no programa de apoio a ameaçados: o vaqueiro com a mulher e três filhos, incluindo as duas vítimas do abuso, além do irmão dele, também com a mulher e três filhos. Os quatro adultos e as seis crianças experimentam, desde fevereiro, quando foram retirados da cidade onde moravam, uma rotina completamente oposta a de quem sempre viveu livre no campo. Os passos são planejados. Ligações para parentes, só em horários determinados. Do que mais sentem falta, o vaqueiro fala da mãe, de 75 anos e com saúde debilitada. O irmão acrescenta que, muito provavelmente, eles não a verão mais.

Todo o sacrifício, porém, só valerá a pena, diz o vaqueiro, se Manoel Alencar Neto, conhecido por Nezinho Alencar, nome que usa na vida política, for preso. Ele conta que, para garantir a punição do fazendeiro de 66 anos, gravou, com um celular escondido numa árvore, as cenas de violência sexual sofrida pelas filhas. O que pode parecer frieza para uns — ou armação, segundo a defesa de Nezinho — é apontada pelo pai das meninas como a única forma de fazer com que acreditassem nele.

— Eu nunca quis dinheiro. Não vou negar que apontei muitas vezes a espingarda para ele, mas sempre pensava em Deus e na vida da minha família, que ia se complicar se eu apertasse o gatilho. Só quero ele preso — diz.

Depois de mostrar as imagens dos abusos captadas pelo celular ao irmão, que diz ter confrontado Nezinho para cobrar explicações, a dupla procurou a Polícia Federal, em Palmas, que prendeu o fazendeiro numa operação de combate à pedofilia na internet. O proprietário ficou cerca de um mês e meio preso, antes de pagar fiança de R$ 22 mil para responder o processo em liber-

dade. A liberação de Nezinho revoltou o vaqueiro.

— A lei de lá é outra. Eu me arrependo de ter denunciado, devia ter feito justiça com as minhas mãos. Hoje eu é que estou preso, e ele está lá, vendendo e comprando gado — desabafou.

Alheio aos trâmites da Justiça, o pai das crianças, que é analfabeto e sempre viveu do trabalho na roça, considera a libertação de Nezinho “um desacato” com a família. E, na simplicidade com que se expressa, diz duvidar que o “velho”, como chama o ex-patrão, estaria livre caso tivesse “mexido com a filha do juiz, do delegado, do promotor ou de outro fazendeiro”. O irmão do vaqueiro concorda, explicando que Nezinho é um homem muito respeitado na região, a quem eles até pediam “bênção”.

Não tardou para recados velados e ameaças mais diretas chegarem, segundo contam. Acuados na casa de um parente, por onde carros luxuosos incomuns num bairro pobre começaram a ser vistos, eles se renderam à indicação de serem colocados sob proteção do Estado. Venderam os bens que tinham de última hora e deixaram Tocantins, de onde os irmãos só haviam saído para temporadas de trabalho no Pará. Querem voltar a “mexer com bicho e plantar”, que, segundo eles, são as únicas coisas que sabem fazer. A dupla reclama de morar “em rua”, numa referência à área urbana, mas não alimenta esperanças de voltar ao lugar que sempre viveram.

— É pedir para morrer — resume o irmão do vaqueiro.