Correio braziliense, n. 19277, 06/03/2016. Brasil, p. 7

A geografia do Aedes

SAÚDE » No epicentro da epidemia de zika no país, notificações de doenças ligadas ao mosquito são maiores nos bairros mais pobres do Recife
Por: ALICE DE SOUZA

ALICE DE SOUZA

 

Recife — Sentado em uma cadeira de balanço na rua de casa, o ambulante José Severino Silva, 67, mal esboça reação diante das brincadeiras dos amigos com sua condição. As pernas doloridas e os pés inchados não permitem passos contínuos. Já faz um mês que ele contraiu chicungunha, mas as marcas da enfermidade se fazem presentes. “Essa doença não respeita velho nem moço. Deixa a pessoa desmoralizada”, ressalta, enquanto enumera a lista de enfermos da comunidade.

Severino mora no Pilar, periferia do Bairro do Recife, primeiro lugar nas estatísticas de dengue, zika e chicungunha na cidade. As arboviroses transmitidas pelo Aedes aegypti se ramificam na capital pernambucana de maneira setorizada. A distribuição intriga os especialistas. A partir de amanhã, algumas perguntas começarão a ser respondidas, com a realização do Levantamento Rápido do Índice de Infestação Predial por Aedes aegypti (Liraa).  A coleta de dados segue até o dia 11 e as análises se iniciam no dia 14.

Os motivos que levam ao crescimento de determinadas arboviroses em cada bairro, explica a secretária-executiva de Vigilância à Saúde do Recife, Cristiane Penaforte, serão clarificados quando os casos forem confirmados e descartados: “As doenças de prevenção vetorial mantêm  uma relação íntima com as condições socioambientais e econômicas. Não há condições de dissociar doenças vetoriais do ambiente. É a questão do lixo, da água, mas também da ocupação desordenada”. Repleto de imóveis históricos fechados e casarões de comércio, o Bairro do Recife concentra 530 casos de arboviroses por 10 mil habitantes. O coeficiente é duas vezes maior do que o segundo colocado, Santo Antônio, com 234 casos.  Se analisados os vírus isolados, o bairro é líder em dengue e zika, seguido de Santo Antônio. A chicungunha, que acometeu Severino, está mais presente na Ilha do Retiro.

Segundo informações do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), da Fiocruz/RJ, não há característica que diferencie a circulação dos vírus em regiões específicas. Eles dependem da quantidade de criadouros e da população suscetível à infecção. Se falta água, a população é obrigada a armazenar. Se não há coleta de lixo, resíduos ocupam as ruas e transformam-se em potenciais criadouros. Os fatores de risco para o surgimento de focos do mosquito Aedes aegypti estão sendo dimensionados nas ações intensificadas desde o fim do ano passado pela Secretaria de Saúde do Recife.

 

Geografia desigual

Não há explicação intrínseca ao vírus para definir a dispersão das arboviroses em uma cidade, mas a relação entre condições de vida e infecção por essas doenças passa longe de ser uma coincidência. É a pobreza que, nas palavras do professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco Érico Andrade, delimita as fronteiras da “geografia do zika”. Lógica aplicável também à dengue e à chicungunha. “O vírus zika nos ensina dolorosamente que a divisão de classes, traduzida por nossas cidades pela segregação urbana, nos leva a condições próximas das florestas mais hostis à vida humana”, escreveu.

Para o professor de arquitetura e planejamento urbano da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Múcio Jucá, o Recife tem “pequenas cidades informais que deveriam ser urbanizadas.” A capital ocupa a 66ª posição no ranking nacional de saneamento das 100 maiores cidades do país, em relatório do Instituto Trata Brasil. Pelo menos 30% dos recifenses, 450 mil pessoas, não têm abastecimento regular de água.

 

Frase

“As doenças de prevenção vetorial mantêm uma relação íntima com as condições socioambientais e econômicas. Não há condições de dissociar doenças vetoriais do ambiente. É a questão do lixo, da água, mas também da ocupação desordenada”

Cristiane Penaforte, secretária-executiva da Secretaria de Vigilância à Saúde do Recife