Correio braziliense, n. 19292, 21/03/2016. Brasil, p. 5

Proteção no papel, descaso na prática

CRISE NA REPÚBLICA » Legislação brasileira sobre recursos hídricos é uma das melhores do mundo, mas falta implementá-la. Especialistas alertam que, sem efetivação das ações, rios ficarão sujeitos a desastres como o de Mariana (MG)
Por: Mariana Pedroza

Mariana Pedroza

Especial para o Correio

 

Recursos hídricos são bens esgotáveis, e cada vez mais pessoas convivem com a irregularidade do abastecimento ou a escassez completa em alguns municípios. Para regulamentar o uso e a captação de água, em 1997 foi criada a Lei n° 9.433, mais conhecida como Lei das Águas. A opinião de especialistas é que a legislação nacional sobre o tema é uma das mais completas e atuais do mundo. Contudo, falta tirar muitos pontos do papel.

Uma das conquistas mais importantes foi a criação dos comitês de bacias, que hoje já somam mais de 200 nas cinco regiões do país. Nelas, são debatidos assuntos como preservação, uso sustentável e responsabilidade social com a água. “O fato de a estrutura de gestão dos comitês ter sido pensada para ser linear mostra que os recursos hídricos devem ser pensados de forma igual, tanto pelo Estado quanto pela iniciativa privada e pela sociedade civil”, explica o gerente da estratégia de água da The Nature Conservance (TNC), Samuel Barrêto.

Mas uma crítica que se faz é sobre o engajamento, tanto do Estado quanto da sociedade civil, no debate e na proposição de ações de proteção dos recursos hídricos. O professor dos departamentos de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB) Oscar Cordeiro Netto defende que “é preciso dar mais visibilidade social e política à questão das águas. O cidadão comum tem pouca ou nenhuma noção do que é um comitê de bacia.”

Em tempos de crises hídricas, em diferentes cantos do país o que se vê são governos estaduais, prefeituras e até o poder federal sem qualificação suficiente para lidar e alertar a população sobre a real situação de escassez, dizem especialistas. Segundo o deputado Evair de Melo (PV-ES), pontos como a segurança do abastecimento hídrico precisam ser rediscutidos. “Nós estamos aprendendo na dor. Não dá para pensar em expansão urbana, na criação de novos loteamentos e condomínios, por exemplo, sem pensar se há água suficiente para atender àquela demanda populacional.”

 

Licenciamento

Aliada ao crescimento urbano está a preocupação com a forma que o restante do meio ambiente é tratado. Para a procuradora regional da República em São Paulo Sandra Kishi, é importante ressaltar que não dá para pensar no uso da água e esquecer a questão do licenciamento ambiental, por exemplo. “Até para evitar situações de criticidade nas bacias hidrográficas, como aconteceu em Minas Gerais, no caso do Rio Doce.”

O fato de algumas crises já terem sido superadas não descarta outras que ainda estão no auge ou por vir, alertam os especialistas. Samuel Barrêto acredita que ainda há muito caminho a ser percorrido e que, em alguns lugares, existem chances reais de populações inteiras viverem situações dramáticas. “A gente precisa se reorganizar e ter uma ação mais direta, no fim das contas, para que possamos ter água para o meio ambiente e para rodar o país”, observa.

Para Netto, se não houvesse a Lei das Águas, muitas dessas crises poderiam ter se agravado. O problema é que não basta existir uma legislação, ressalta. “Eu acho que a implementação (da lei) é pífia, porque em várias situações não há interesse dos agentes de emponderar o sistema de um modo geral”, comenta. De acordo com ele, existe também o descuido do Estado na atuação em determinados aspectos. “Não me lembro de ter visto nenhum ministro do Meio Ambiente em exercício participar de uma reunião inteira do Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Em algumas situações, não há vontade política de participar da gestão compartilhada das águas”, acusa.

 

Tragédia recente

Em 5 de novembro de 2015, populações de municípios mineiros e capixabas viram uma avalanche de 62 milhões de metros cúbicos de lama tomar conta do leito do Rio Doce. A tragédia do rompimento da barragem de rejeito de minério da Samarco é o maior acidente ambiental do país.

 

Frase

"A gente precisa se reorganizar e ter uma ação mais direta, no fim das contas, para que possamos ter água para o meio ambiente e para rodar o país”

Samuel Barrêto, gerente de estratégia de água da The Nature Conservance