O globo, n. 30.173, 17/03/2016. País, p.3

Ação contra a Justiça

Gravação indica que Dilma tentou blindar Lula contra Sérgio Moro ao nomeá- lo ministro; ex- presidente pede interferência na Receita e no STF; revelações provocam
novos protestos em 16 estados e no Distrito Federal, e oposição exige renúncia

Investigado na Lava- Jato e sob ameaça de prisão, o ex- presidente Lula voltou ontem ao governo, nomeado ministro da Casa Civil pela presidente Dilma para ganhar foro privilegiado no STF e escapar de decisões do juiz Sérgio Moro. Antes de a nomeação ser oficializada, porém, Moro liberou o sigilo de gravações, inclusive de conversas entre o ex- presidente e Dilma, com indícios de acerto entre os dois para obstruir a Justiça e prejudicar as investigações, segundo avaliação da força- tarefa da Lava- Jato. Em conversa gravada ontem com autorização judicial, Dilma avisa a Lula que estava enviando a ele o Termo de Posse para que use “em caso de necessidade”, o que agravou a crise. Multidões saíram às ruas em 17 capitais pedindo a renúncia da presidente. Houve confrontos em Brasília. Só após divulgadas as gravações, edição extra do Diário Oficial oficializou a nomeação. Em nota, o governo repudiou a divulgação dos grampos, “que afronta direitos e garantias da Presidência”, e anunciou que tomará medidas judiciais. Em outra gravação, Lula reclama do que chama de “República de Curitiba” e de “uma Suprema Corte totalmente acovardada”. Numa outra conversa, o petista pede ao ministro Nelson Barbosa que pare investigação da Receita sobre o Instituto Lula. No Congresso, parlamentares de oposição pediram, aos gritos, a renúncia da presidente. Manifestantes foram para a frente do Palácio do Planalto defender o impeachment de Dilma, além de apoiar Moro, que justificou a quebra do sigilo dizendo que a “democracia exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”. Em entrevista antes da divulgação dos grampos, Dilma negara ter nomeado Lula para que ele tenha foro privilegiado. A comissão do impeachment deve ser instalada hoje na Câmara.

editorial “Lula e Dilma apostam tudo para tentar sobreviver” Uma trama que envolve grampo telefônico, tentativa de obstrução da Justiça e personagens que estão na cúpula do poder em Brasília enredou o país ontem em um capítulo inédito de sua História. De desfecho cada vez mais imprevisível. No dia em que o ex- presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltava ao cenário em que foi soberano por oito anos, para dividir com a sua sucessora, a presidente Dilma, o protagonismo no Planalto, o juiz Sérgio Moro, da 13 ª Vara Federal de Curitiba, decidiu retirar o sigilo do processo que investigava Lula por envolvimento com a Lava- Jato.

Moro é hoje responsável por analisar pedido de prisão contra o ex- presidente, remetido pela Justiça de São Paulo à Curitiba. Quatro horas e meia depois de o líder do governo na Câmara, José Guimarães ( PT- CE), anunciar, via rede social, que o ex- presidente se tornaria ministro da Casa Civil, começavam a se tornar públicas conversas entre Lula e autoridades do governo. A que de imediato repercutiu, primeiro pelos gabinetes de Brasília, depois pelas ruas do país, foi gravada ontem, às 11h20 da manhã, entre o ex- presidente e Dilma. “Seguinte, eu tô mandando o ' Messias' junto com papel... pra gente ter ele. E só usa em caso de necessidade, que é o termo de posse, tá?!”, disse a presidente, se referindo a Jorge Rodrigo Araújo Messias, subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil. A frase mostra que Dilma enviaria a Lula uma espécie de termo preventivo de posse, já que inicialmente a cerimônia que oficializaria o retorno dele ao governo estava marcada para a próxima terça- feira, dia 22. Com o termo, Lula se livraria da obrigação de ter que cumprir um mandado de prisão na primeira instância. Seria como um habeas corpus em favor do ex- presidente.

Depois da divulgação da conversa, o governo antecipou a posse para hoje, às 10h. Integrantes da Lava- Jato viram sinais de tentativa de obstrução à Justiça nos diálogos. A presidente Dilma reagiu a Moro, classificando a divulgação de “flagrante violação da lei e da Constituição, cometida pelo juiz autor do vazamento”. Ela convocou uma reunião de emergência, onde determinou uma cruzada jurídica contra Moro. O juiz, em nota, defendeu a decisão de tirar o sigilo da investigação, sustentando que “governados devem saber o que fazem os governantes”. Para ele, “levantar sigilo permite saudável escrutínio público”.

Em outra conversa, em fevereiro, com o ministro Nelson Barbosa ( Fazenda), Lula pede interferência na Receita Federal, que investiga seu instituto. “É preciso acompanhar o que a Receita está fazendo com a Polícia Federal. Vocês precisam se inteirar do que eles estão fazendo no Instituto. Eu acho que eles estão sendo filhos da puta demais. Estão procurando pelo em ovo. Vou pedir para o Paulo Okamotto tudo no papel porque era preciso você chamar o responsável e falar: ‘ Que porra que é essa?’”.

À medida que as gravações iam se tornando públicas, manifestantes se dirigiam espontaneamente às ruas, em protestos por todo o país. Ontem à noite, foram registrados atos em pelo menos 15 estados e no DF. Panelaços foram ouvidos de Norte a Sul. Em frente ao Palácio do Planalto, chegou a haver tumulto. As sucessivas notícias com detalhes das gravações agravaram a já aguda crise que tomou conta do segundo mandato de Dilma, desde sua posse — ampliada, em espiral crescente, desde o começo do mês, com as informações sobre a delação premiada do ex- líder do governo, senador Delcídio Amaral ( sem partido).

Confrontada por crises simultâneas, a presidente terá, ainda, que lidar, a partir de hoje, com o dia a dia do processo de impeachment, que começa a tramitar no Congresso.

Se inflamou as ruas, a divulgação da gravao ções não teve o mesmo efeito nas Cortes mais altas do país, também citadas nas gravações. Em uma das conversas com Dilma, o ex- presidente faz críticas contundentes à atuação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. “Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada, nós temos um Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado, um Parlamento totalmente acovardado, somente nos últimos tempos é que o PT e o PC do B é que acordaram e começaram a brigar”, disse Lula. Procurados, ministros dos tribunais superiores optaram pelo silêncio.

O diagnóstico do ex- presidente para o alcance das denúncias da Lava- Jato sobre a República é desolador. Ao se referir aos presidentes da Câmara, Eduardo Cunha ( PMDB- RJ), e do Senado, Renan Calheiros ( PMDB- AL), ambos investigados por relação com desvios na Petrobras, foi enfático: “Nós temos um presidente da Câmara fodido, um presidente do Senado fodido, não sei quanto parlamentares ameaçados, e fica todo mundo no compasso de que vai acontecer um milagre e que vai todo mundo se salvar”. O desabafo leva aquele já apontado como mito político do país sucumbir a um medo: “Tô assustado com a República de Curitiba”, disse.