O globo, n. 30080, 15/12/2015. Rio, p. 10

A ameaça que vem da mata

 

ANA LÚCIA AZEVEDO

Cientista chama atenção para risco de novos vírus se espalharem pelo ambiente urbano.

“O homem modifica o meio ambiente e vira refém dele. Se um vírus silvestre se adapta a um inseto urbano, ele se espalha pelas cidades”
Pedro Fernando Vasconcelos Virologista

Cientista que ligou o zika à microcefalia, Pedro Fernando Vasconcelos alerta para o risco de propagação de outros dois vírus através do Aedes. A epidemia de zika trouxe o medo da microcefalia e de complicações neurológicas e a certeza de que as chamadas doenças da floresta se tornaram uma ameaça concreta para as cidades. Em seu laboratório no Instituto Evandro Chagas, em Ananindeua, no Pará, o virologista Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, cuja equipe comprovou a relação entre o zika e a microcefalia, finaliza, entre outros, um estudo sobre o mayaro, vírus aparentado com o chicungunha e que causou um surto este ano em Goiás. O mayaro é transmitido pelos mosquitos silvestres Haemagogus.

— É um vírus importante. Estudos de laboratório revelaram que ele se adapta bem ao Aedes aegypti. Ele merece atenção porque pode se urbanizar — observa Vasconcelos.

Considerado um dos maiores caçadores de vírus do mundo, Pedro Vasconcelos há anos alerta para os riscos da mistura explosiva de intensificação do mau uso da floresta, falta de controle de insetos transmissores e mudanças climáticas. É essa combinação que torna possível a emergência de doenças como a do zika. Outro vírus que não pode ser desprezado é o oropouche.

— Ele causa surtos com frequência e está urbanizado. Nosso único alívio é que ainda não se mostrou transmissível até agora pelo Aedes nas cidades. Seu vetor é o maruim (Culicoides paraensis), um tipo de mosca hematófaga. Já tivemos epidemias recentes este ano no Brasil — observa ele.

A febre do oropouche afetou cidades grandes como Manaus, Belém e Santarém. E há registros de casos em Tocantins, Maranhão, Roraima, Rondônia e Acre. No exterior, o vírus atinge Panamá, Trinidad e Tobago e Peru. E, como o mayaro, é receptivo em laboratório ao Aedes.

Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Febres Hemorrágicas Virais e do Comitê de Febre Amarela da Organização Mundial de Saúde (OMS), Vasconcelos está assombrado pela transformação do zika, de um micro-organismo sem importância num agente infeccioso capaz de provocar alterações neurológicas incapacitantes ou letais.

— Temos que descobrir, e logo, como o vírus lesiona os fetos a ponto de causar microcefalia e outras alterações do desenvolvimento, como malformação dos olhos. Nos bebês da maioria das gestantes infectadas, ao que parece, nada acontece. Mas alguns sofrem sequelas devastadoras. Por que isso ocorre é um completo mistério. Queremos iniciar o mais depressa possível estudos em animais para encontrar respostas e poder agir. Por enquanto, me resta a angústia de ver gestantes em risco e não poder fazer nada — afirma o médico. VÍRUS NOVOS NA AMAZÔNIA Aos 58 anos, Vasconcelos estuda vírus há mais de três décadas. Filho de uma família pobre do Pará, com sete irmãos, ele se orgulha de ter feito toda a sua formação em escolas públicas. E de combinar a experiência em campo, no atendimento a doentes no meio da floresta, ao trabalho de laboratório.

— Foi essa experiência, na mata, com os insetos e os doentes que fez muita diferença na minha carreira. É importante entender os ecossistemas, conhecer a Amazônia e todo o Brasil. Também fundamental é o trabalho em equipe. Não se faz nada sozinho — salienta.

Hoje, está à frente do maior laboratório de biossegurança do Brasil, responsável, entre outras coisas, pelo estudo do ebola. Sua equipe de quase cem profissionais identifica vírus da Amazônia e de outros países. E, na Amazônia, encontrar vírus novos não é raridade.

— A mesma biodiversidade que nos encanta em plantas, por exemplo, também existe em insetos hematófagos, que podem transmitir vírus, e se reflete no elevado número desses micro-organismos — diz o pesquisador, que já isolou pessoalmente 130 vírus.

Arbovírus são transmitidos por artrópodes como os insetos e comuns nas florestas de todo o planeta. É o caso dos que transmitem dengue, zika, febre amarela e chicungunha. Eles se adaptaram bem ao Brasil, mas vieram da Ásia (o da dengue) e da África (os demais). Vasconcelos e seu grupo têm descoberto novos vírus na região de Carajás, no Pará.

— A mineração trouxe mais gente para o interior da mata, onde estão insetos e vírus. O homem entra, modifica o meio ambiente e, ao mesmo tempo, vira refém dele. Se um vírus silvestre se adapta a um inseto urbano, ele se alastra pelas cidades — explica o médico e cientista.

A febre amarela é o caso mais clássico. Vírus e mosquito foram trazidos para o Brasil pelo tráfico de escravos africanos.

— Chegaram, ao que tudo indica, em 1685, em Pernambuco. Dali se espalharam pela Bahia e pelo resto do país. Hoje, a febre amarela urbana é transmitida pelo Aedes e a silvestre, pelo Haemagogus — conta Vasconcelos.

As arboviroses intrigam a ciência pela variedade da infecção, de casos assintomáticos a complicações cerebrais fatais, como a meningite. Também não existe resposta para o fato de micro-organismos causarem epidemias e depois desaparecerem por completo. Foi o que aconteceu no Brasil nos anos 70, um mistério que permanece sem solução.

— Durante a ditadura, o litoral de São Paulo ao Paraná foi afetado por uma epidemia de vírus rocio, um flavivírus como zika e dengue, mas transmitido pelo Culex (pernilongo). Provocou encefalite em cerca de mil pessoas, a maioria pescadores. A infecção tinha uma taxa de 20% de letalidade, e muitos dos sobreviventes tiveram sequelas graves. Porém, como surgiu, desapareceu — frisa Vasconcelos.

Particularmente temido pelo pesquisador é o flavivírus causador da encefalite japonesa, doença endêmica na Ásia. Como o rocio, ele também é transmitido pelos pernilongos Culex.

A grande família dos flavivírus se divide entre os transmitidos por Aedes, como zika e o da dengue, que costumam ser associados a febres hemorrágicas, e aqueles que infectam o homem por meio dos Culex, que podem levar a encefalites.

Segundo Vasconcelos, há duas certezas e muitas dúvidas. A primeira certeza é que doenças como zika, chicungunha e dengue vieram para ficar. A segunda é que o combate ao mosquito não pode jamais parar.

— Rei morto, rei posto. Você se livra de uma doença e pode aparecer outra. Por isso, é preciso controlar o mosquito. Sem ele, os vírus não se espalham — alerta. "NINGUÉM ACHAVA QUE O ZIKA SERIA PROBLEMA” As dúvidas vão desde os mecanismos de mutação dos vírus para causar doença à sua capacidade de provocar epidemias.

— Esperávamos por mais casos de chicungunha. Ninguém achava que o zika seria problema. Mas ele se tornou epidêmico e entrou com muita força. E o chicungunha continua a ser uma ameaça. Ele não se espalhou muito, mas não significa que não fará isso se o mosquito não for controlado. Minha maior preocupação agora é entender o que aconteceu com o zika e ajudar a combatê-lo — frisa.

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Microcefalia: ministério cria protocolo com exames para mães e bebês

 

RENATA MARIZ 

Crianças com a doença farão novos testes, além dos que são de rotina.

-BRASÍLIA- O Protocolo de Atenção à Saúde para Microcefalia, divulgado ontem pelo Ministério da Saúde, definiu o rol de exames pelos quais bebês e suas mães terão de passar. Recémnascidos com perímetro cefálico menor que 32 centímetros deverão fazer ultrassonografia da “moleira”. Mas, se a formação óssea estiver fechada ou se restar dúvida, eles passarão por tomografia de crânio.

Secretário de Atenção à Saúde, órgão ligado ao ministério, Alberto Beltrame diz que a tomografia deve ser o último recurso, por envolver uma carga elevada de radiação e a necessidade de sedar o bebê. Segundo ele, não faltarão tomógrafos nem recursos. Técnicos serão treinados.

— O ultrassom no Sistema Únicos de Saúde custa R$ 34 e a tomografia, R$ 97. O valor não é tão significativo.

Além de exames de rotina, como testes do pezinho, da orelhinha e do olhinho, os bebês com microcefalia passarão pelo Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (Peate). Considerado mais sofisticado, ele entrou no protocolo devido à constatação de que muitas crianças microcéfalas apresentam surdez congênita. O ministério, no entanto, não tem dados sobre essa condição. Segundo o governo, 737 maternidades receberão o equipamento para fazer o Peate, ao custo individual de R$ 35 mil. PARTO NORMAL É INDICADO O parto normal continua sendo a recomendação em casos de suspeita ou diagnóstico de microcefalia, disse Beltrame. De acordo com ele, não há sofrimento ou risco para o bebê. Quando a doença é comprovada, o protocolo de atendimento prevê encaminhamento a um centro especializado de reabilitação ou espaços similares. Segundo Beltrame, existem 136 serviços dessa natureza no país, além das associações de pais e amigos dos excepcionais (Apaes). Ele frisa a importância de a criança receber estimulação do nascimento até os 3 anos de vida pelo menos, quando termina o desenvolvimento neurológico.

Outra regra será registrar na caderneta ou cartão da gestante, assim como no prontuário da mulher, a ocorrência de sintomas do vírus zika. O Ministério da Saúde também vai estimular a realização do pré-natal. Dos três milhões de partos realizados ano passado no Brasil, constatou-se que metade das grávidas iniciou o acompanhamento médico na 12ª semana de gestação. A ideia, de acordo com o protocolo, é que elas comecem o mais breve possível. Fica mantida a recomendação do ultrassom obstétrico, preferencialmente, no primeiro trimestre.

O governo também investirá R$ 5 milhões em testes de gravidez nas unidades públicas, para que as mulheres saibam, o quanto antes, se estão esperando um bebê. Em outra frente, será ampliada a oferta de contraceptivos. O secretário evitou desestimular a gestação, dizendo que não se deve ter “pânico”, mas admitiu que o “medo” é justificado. TECNOLOGIA CONTRA O “AEDES” No Rio, a Secretaria estadual de Saúde, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), oferecerá palmtops com sistema de georreferenciamento para garantir que os municípios consigam acompanhar, em tempo real, o trabalho dos agentes de endemia na busca por focos do Aedes aegypti, o mosquito transmissor de dengue, chicungunha e zika. A tecnologia promete agilizar a elaboração dos relatórios e a implementação de ações de combate às doenças.

O estado também está recebendo, do Ministério da Saúde, larvicida suficiente para tratar um volume de água equivalente ao de 120 piscinas olímpicas. O reforço foi repassado aos estados das regiões Nordeste e Sudeste, totalizando mais 17,9 toneladas do produto para eliminar as larvas do mosquito.