Adeus às conquistas

 

TIAGO DANTAS, RENATA MARIZ E SILVIA AMORIM

O globo, n. 30047, 12//11/2015. País, p. 3

 

Brasileiros que ascenderam nas últimas décadas sentem os efeitos da crise. A perda de conquistas, que pode devolver 3 milhões às classes D/E, provoca desencanto entre os eleitores da presidente Dilma, relatam -BELÉM (PA), PETROLINA (PE), SÃO RAIMUNDO NONATO (PI), JUAZEIRO (BA) E SÃO PAULO- Eles viram a vida melhorar nas últimas décadas. Na era Lula, experimentaram um inédito aumento do poder de compra. Adquiriram TVs, geladeiras, motos, carros, casa própria. Mas, agora, brasileiros que ascenderam socialmente sentem os efeitos da crise econômica e temem que a bonança tenha ficado para trás. Nos últimos dias, O GLOBO visitou dez cidades do Norte e do Nordeste do país e constatou como o desemprego e a inflação têm afetado a vida dessas pessoas.

Sem polpa. Veida Maria, que recebeu o primeiro cartão do Fome Zero de Lula, reclama da perda de renda: “Acabou negócio de Danone”

A crise provoca um efeito político que fica evidente na conversa com eleitores. Representantes do lulismo e eleitores de Dilma Rousseff em cidades do interior de Pernambuco, Bahia e Piauí, onde a petista teve mais de 80% dos votos, dizem-se insatisfeitos com a presidente, embora alguns atribuam o agravamento do quadro à classe política como um todo.

Eles criticam o aumento dos preços e as mudanças nas regras de aposentadoria, e mencionam boatos sobre cortes no Bolsa Família — os cortes, até agora, só afetaram a verba de gestão do programa. A porcentagem de pessoas que avaliam o mandato de Dilma como ótimo ou bom na região caiu de 53%, no fim de 2014, para 10%, em agosto deste ano, segundo o Datafolha.

As regiões Nordeste e Norte devem registrar nos próximos dois anos ritmo maior de crescimento das classes D/E, segundo pesquisa da Tendências Consultoria. O estudo mostra que, até 2017, em todo o país, 3,1 milhões de famílias devem entrar para esse grupo, formado por quem tem renda média familiar mensal de até R$ 1.957. A maioria retorna da festejada classe C, que volta a minguar após a perda de bens e benefícios conquistados nos últimos anos.

— De 2004 a 2013 a gente teve um padrão de crescimento fortemente puxado pelos setores de varejo e serviços, conhecidos por empregarem a mão de obra de baixa qualificação. Só que a festa do consumo acabou, e esses setores estão puxando a derrocada para baixo agora — disse o coordenador da pesquisa, Adriano Pitoli.

Morador de São Raimundo Nonato, no interior do Piauí, o pedreiro Dilton Ferreira dos Santos, de 50 anos, viu reduzir os trabalhos na construção civil que antes sobravam na região. Pela primeira vez desde 2012, está desempregado há mais de três meses. A trajetória de Santos se confunde com a de muitos nordestinos: depois de passar boa parte da juventude trabalhando na lavoura sem salário fixo, conseguiu empregos que pagavam até R$ 1.000 mensais a partir de 2010. Construiu casa, comprou TV, geladeira e uma moto, que guarda na sala, já que o imóvel não foi projetado para ter garagem.

Na Grande Belém (PA), drama parecido é enfrentado pelo também pedreiro Antonio Furtado Costa, de 44 anos. Morador de Ananindeua, ele adotou o seu próprio “ajuste fiscal”: aposentou o ventilador e trocou as lâmpadas. Mesmo assim, a conta de luz passou de R$ 35,78 em setembro para R$ 57,92 em outubro. Seus ganhos semanais, que chegavam a R$ 1,8 mil até o início deste ano, caíram para cerca de R$ 800.

— Antes, eu passava serviço para colegas para não deixar o cliente esperando. Agora, faço orçamentos, espero o cliente ligar, e nada.

Com ensino fundamental, Antonio fala com desenvoltura sobre o momento político. Diz que, desde o impeachment de Collor, só vota nulo, por “falta de credibilidade” dos candidatos. Apesar de o filho ser beneficiário do Bolsa Família, critica o governo e outros políticos, como Eduardo Cunha, presidente da Câmara:

— A gente é simples, mas não é besta.

 

‘Mala até na cabeça para não pegar táxi’

 

Em 2004, Sandoval de Jesus Mesquita Nascimento decidiu abandonar a rotina estressante e mal remunerada de motorista de ônibus, profissão que exerceu durante 22 anos, para ser taxista. O mercado estava propício. Vantagens para adquirir o carro. Clientela em alta. Mudou de casa, comprou bens. Passados 10 anos, acumula dívidas.

JORGE WILLIAMTAXISTA, 58 ANOS, MORADOR DE BELÉM DO PARÁ SANDOVAL MESQUITA

— Tinha canal fechado, foi cortado. A internet está cortada há três meses. Se preciso fazer uma consulta, vou ao “cyber”. Estamos tirando o supérfluo — diz o taxista. — O governo Lula foi bom, abriu muitas portas. O primeiro da Dilma também foi positivo. Mas este segundo governo não está dando

para aguentar. Item importante, a luz chegou a ser cortada, mas uma das três filhas pagou a conta. A prova de que a crise chegou, para o paraense de 58 anos, foi o faturamento no mês de outubro, quando Belém recebe o Círio de Nazaré, festa que arrasta milhares de fieis pela cidade.

— Costumava fazer R$ 7 mil em outubro. Consegui R$ 4 mil e pouco no mês passado. As pessoas carregavam a mala na cabeça, iam

se arrastando, mas não pegavam táxi. Denise Cunha Maia, de 53 anos, mulher do taxista, animou-se em 2014 a abrir uma lojinha

de roupas, depois de anos de bons negócios como informal, vendendo a amigos e conhecidos. Blusas, calças e vestidos ficaram encalhados. Atualmente, até crédito de recarga de celular ficou estagnado. No final da tarde do último sábado, ela contabilizava dois créditos vendidos, contra uma média de 12 a 15 diariamente num passado não muito distante. — Cortei manicure, que ia toda semana. A prioridade de Denise é manter o plano de saúde que, com muito custo, consegue pagar desde 2010, com o aluguel de duas quitinetes no bairro do Tapanã.

 

‘As coisas têm um preço a cada dia’

 

Nos últimos anos, a pesca e a plantação de grãos deram à família de Antônio José de Souza, de 50 anos, uma casa, telefones celulares com internet, TV com antena parabólica e uma moto, que substituiu o antigo burrinho que o pescador utilizava para buscar água na lagoa de Pavussu, no interior do Piauí. Enquanto o trabalho do patriarca garantia a renda da família, os filhos puderam estudar sem se preocupar

PEDRO KIRILOSPESCADOR, 50 ANOS, MORADOR DE PAVUSSU (PI) ANTÔNIO JOSÉ DE SOUZA

com a lavoura. Em boa parte do Nordeste a crise econômica veio acompanhada de uma seca que já dura pelo menos cinco anos. A lagoa da cidade, considerada uma das maiores do estado, secou completamente há dois meses. Sem chuva, Antônio não consegue plantar nem pescar. Como os produtos agrícolas são poucos, o comércio local está desaquecido e também faltam empregos

na construção civil. Antônio vive na casa que construiu com a mulher, uma filha e dois netos. A única fonte de renda da família são os cerca de R$ 280 que recebem do Bolsa Família. Como o dinheiro do programa chega todo mês, o benefício funciona como fonte de crédito

para fazer compras fiado. Embora viva em uma das cinco cidades que mais dependem do Bolsa Família no Brasil, Antônio se declara insatisfeito com o segundo mandato da presidente Dilma. O pedreiro lembra, porém, que a situação era

mais difícil antes dos anos 2000: — Sempre fui com Dilma. No começo via ela com outros olhos. Ela disse que não ia fazer as coisas de Aécio (Neves), mas está cortando tudo. O salário não aumenta, mas

as coisas têm um preço a cada dia. O pescador pondera que a presidente tem

que “fazer alguma coisa”.

 

Como antes, roupa lavada na mão

 

A cultura do açaí, da qual dependem milhares de famílias do país, especialmente no Norte, já teve dias melhores, segundo as populações ribeirinhas. Na comunidade que vive na Ilha do Combu, a poucos quilômetros de barco do porto de Belém, o comentário se

JORGE WILLIAMCOLHEDORA DE AÇAÍ, 47 ANOS, DA ILHA DO COMBU (PA) ANTÔNIA C. P. DA CONCEIÇÃO

repete, com pequenas variações: — A gente vive do açaí, graças a Deus. Mas tudo aumenta, menos o preço que o batedor quer pagar — reclama Antônia Cristina Pinheiro da Conceição, referindo-se ao atravessador que transforma o fruto sólido em preparo pastoso. Ribeirinha de 47 anos, que há 8 migrou da Ilha do Marajó para Belém, fugindo da fome e da falta de oportunidades, Antônia viu

em coisas triviais, para grande parte da população, os maiores saltos de qualidade de vida que já experimentou. Primeiro a energia elétrica, que chegou há cerca de cinco anos onde mora. Os eletrodomésticos

são poucos e antigos. Uma máquina de lavar velha pifou faz alguns meses. Enquanto não sobra dinheiro para consertar, ela lava na mão as roupas da família, que inclui marido, dois filhos que moram no mesmo

terreno e netos. A diminuição da renda, que oscila de menos de R$ 100 na semana a cerca de R$ 200,

também levou Antônia a usar mais lenha para cozinhar, do lado de fora da casa feita de madeira em tons vermelho e rosa. O fogão passou a ser ligado apenas para preparos rápidos ou alguma necessidade de higiene do

neto de apenas 6 dias de vida. — O gás está caro demais. A gente tem que garantir o dinheirinho de comprar nossa água

para beber e cozinhar, porque essa aqui é suja, só dá pra lavar roupa e limpar a casa — diz ela, apontando para o rio na porta de casa. — O resto, a gente vai se virando.

 

Medo de ter que vender moto e carro

 

Entre 2010 e 2013, o emprego em uma empresa de cerâmica rendeu um salário que Paulo Cesar Rodrigues, de 27 anos, considerava razoável. Ganhando em torno de R$ 1,2 mil por mês, ele pôde comprar uma casa em Afrânio, no interior de Pernambuco, onde ainda vive com a mulher e os dois filhos. Na sala, recentemente pintada, há sofá, TV a cabo, computador e uma moto vermelha.

PEDRO KIRILOSCERAMISTA, 27 ANOS, MORADOR DE AFRÂNIO (PE) PAULO CESAR RODRIGUES

A casa foi construída em um tempo em que guardar veículos não era uma necessidade dos moradores da cidade. Como na moto não cabem as duas crianças, Paulo Cesar também comprou um carro. Embora admita que possa ter que vender um dos veículos caso não arrume emprego até o fim

do ano, ele espera não ter que se desfazer do que conquistou nos tempos de bonança.

— A coisa vinha vindo bem até 2012, 2013, mas aí foi ficando mais complicado. De uns

meses para cá, tudo o que a gente vê é o povo reclamando dos preços das coisas, do

desemprego, do governo, de tudo. O ceramista diz estar insatisfeito com o segundo mandato da presidente Dilma, embora ainda não tenha muita certeza sobre como vai votar nas próximas eleições: — Lula fez muita coisa no começo, ajudou muito aqui no Nordeste. Mas neste ano, com a Dilma, as coisas estão diferentes. Ela vai ter que arrumar as coisas, ou então vai aparecer um outro que resolva. Mas ruim do

jeito que está, não pode ficar. Sem se desfazer da moto e do carro, o ceramista vai tentar fazer economias e continuar procurando emprego. Mas, ao conversar com colegas que trabalham em outras empresas, tem notado que demissão não é o único problema causado pela crise: — O que as pessoas dizem é que aumentou o serviço e caiu o salário.