Legalização dos jogos de azar

 

O globo, n. 30030, 26//10/2015. Opinião, p. 14

 

Aposta equivocada

 

Admita-se, por um exercício de divagação, que o Brasil liberasse os jogos de azar. Mais do que ingenuidade, seria um perigoso atestado de hipocrisia achar que a sólida estrutura montada pelos “capos”— para, do submundo da contravenção, controlar a jogatina — poderia ser contida nos limites da legalidade.

Liberados o bicho, as máquinas de azar e os cassinos, o que se veria de imediato seria o assalto dessas quadrilhas sobre o movimento de apostas, para preservar sua influência nessas atividades, agora com o beneplácito do Estado. A força dos reais donos do jogo no país é um poder que se mede pela circunstância de as “famílias” terem conseguido, por décadas, ampliar cada vez mais seus domínios, à sombra do formalismo de uma ilegalidade cujas ações não logram ser alcançadas pelos mecanismos de defesa das instituições.

Esse é o aspecto mais claramente deletério dos ensaios da legalização dos jogos de azar. Trata-se de movimento organizado — inclusive com forte lobby nos Poderes da República, principalmente no Legislativo. Volta e meia, tenta-se colocar essa carta na mesa.

Mês passado, por exemplo, no olho do furacão da crise que impõe a necessidade de um ajuste fiscal ao país, para fazer frente aos equívocos da política econômica do lulopetismo, o Planalto chegou a piscar positivamente para deputados da bancada do bicho que acenavam com a liberação do jogo como fonte de oxigenação do caixa do governo.

Aparentemente, a proposta não vingou, ao menos naquele momento, mas a liberação de roletas, cassinos e maquininhas nunca chega a ser definitivamente tirada da agenda do Legislativo. É certo que também desta vez isso não terá acontecido.

Outro aspecto que desaconselha a legalização também diz respeito à atuação das quadrilhas de contraventores — esta, no entanto, com graves aspectos criminais. A crônica da atuação dos banqueiros de jogos de azar no Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro, é marcada por uma série de episódios de extrema violência, que não poucas vezes resvalaram para homicídios. Para manter seus domínios, os “capos” não hesitam em limpar os caminhos pelos meios que lhes aprouver, dentro de um manual em que corrupção e lavagem de dinheiro também são indefectíveis verbetes.

A expansão desse poder forjado na violência consolidou-se, nos últimos anos, com a ligação de “banqueiros” com grupos mafiosos internacionais. É uma força que também funciona no sentido inverso: investigações da Polícia Federal mostram que grandes “capos” fluminenses globalizaram de tal forma suas atividades que lograram estendê-las para além das fronteiras do país, alcançando mercados no Uruguai, na Argentina e no Equador.

É ilusório, portanto, achar que a legalização do jogo no Brasil passaria ao largo dessa azeitada engrenagem. Essa é uma proposta que, longe de servir ao país, teria por resultado de fato não só consolidar, mas avalizar o poder de grandes quadrilhas.

 

Mercado de trabalho

 

Jorge Antunes

 

Para o baile de formatura do Colégio Pedro II, em 1960, a vaquinha feita pelos estudantes permitiu-nos contratar a Orquestra de Waldir Calmon. O solovox, instrumento único no Brasil, encantava as moçoilas e os rapazes do colégio padrão. Calmon se consagrou, a partir de 1944, tocando e dando emprego a músicos, no Cassino Atlântico em Santos, e no Cassino Copacabana no Rio. Com o fechamento dos cassinos, em 1946, a vida começou a ficar difícil para os músicos.

O maestro Guerra Peixe recebeu em 1938 convite do Cassino Atlântico, de Petrópolis, para atuar como pianista. Adaptando-se ao estilo do crooner Moreira da Silva, consagrou-se como grande orquestrador, fazendo arranjos para a orquestra daquela casa de jogos. Guerra Peixe, por indicação de Vicente Paiva, em 1939, foi trabalhar como violinista na orquestra do Cassino Icarahy. O fechamento dos cassinos também tornou sua vida mais difícil.

Mário Zan conheceu, em 1940, o diretor do Cassino Atlântico, o polonês Ziembinski. Este, ao conhecer o trabalho do jovem acordeonista, o contratou imediatamente. Com o fechamento dos cassinos em 1946, a vida de todos os acordeonistas começou a ficar difícil.

O clarinetista Abel Ferreira, que, quando menino do interior, tocou em bandinha de coreto, decidiu, em 1935, viver de música. Em 1943 se fixou no Rio de Janeiro, tocando no Cassino da Urca. Com o fechamento dos cassinos três anos depois, sua vida começou a ficar difícil.

Em 1921, Pixinguinha começou a tocar no Cassino Assírio, no subsolo do Theatro Municipal. O milionário Arnaldo Guinle, apaixonado por seu grupo, resolveu bancar a hoje histórica temporada de Pixinguinha em Paris. Com o fechamento dos cassinos, os músicos assistiram perplexos à arrasadora diminuição do mercado de trabalho.

O desastre do fim dos cassinos no Brasil teve uma artífice: dona Santinha. Foi a sra. Carmela Leite Dutra, mulher do presidente Dutra, que exigiu do marido a assinatura do decreto-lei 9.215, de 30 de abril de 1946, que fechou os cassinos. Dona Santinha foi mais longe: pediu que se extinguisse o Partido Comunista Brasileiro. Seu desejo veio a ser atendido um ano depois.

Neste momento de crise, em que é cogitada a criação de novo imposto, acho bastante oportuno colocar-se em pauta a discussão sobre a legalização dos cassinos.

Em turnê de concertos recente, fiquei impressionado com a quantidade de brasileiros em Buenos Aires. A presença de tantos brasileiros tinha um motivo: o Cassino Puerto Madero. Milhares de brasileiros se deslocam até lá a cada ano, para evadir fortunas. Grandes fortunas brasileiras, que já deveriam estar sendo aqui tributadas, escorrem para as burras hermanas a todo tempo. Urge reabrir os cassinos, cujos impostos vultosos poderão ajudar na arrecadação de que precisamos. Os cassinos, além disso, ampliariam o mercado do turismo e abririam novas e inúmeras vagas de trabalho direto e indireto.