Preconceito e estigma na política de drogas

 

Presidente da Anvisa, ao falar sobre o canabidiol Há uma grande chance de se prender usuários como se fossem traficantes
Leon Garcia Diretor do Senad, do Ministério da Justiça, sobre a legislação atual No Congresso, até conservadores se convenceram de que era um caso à parte, porque é um medicamento Ivo Bucaresky

Às vésperas do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização das drogas, um grupo de representantes dos ministérios da Saúde e Justiça, além de cientistas e juristas, criticaram duramente o tratamento que se dá hoje no combate aos entorpecentes no Brasil. Reunidos num fórum que segue até amanhã no Tribunal de Justiça do Rio, adjetivos como “estigmatizante”, “preconceituosa” e de expressões como “descolada da realidade” foram ouvidas repetidamente em referência à política atual.

Os palestrantes aguardam com expectativa a decisão do STF sobre um recurso extraordinário que poderá tornar inconstitucional o artigo 28 da lei 11.343/ 06 (a Lei de Drogas), o qual fixa penas para “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”. Na prática, isto pode descriminalizar o consumo pessoal de drogas.

— Estamos muito atentos e com muita esperança na decisão do STF — afirmou o presidente da Fiocruz e da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, Paulo Gadelha. — Não se pode criminalizar a opção que as pessoas fazem na sua vida íntima, sem gerar riscos para outros. Então não se pode criminalizar um usuário.

ABERTURA PARA CULTIVO E USO PRÓPRIO

Gadelha destaca que a Fiocruz defende a abertura para o cultivo de drogas, como a maconha, e sua liberação para uso próprio. Para tal, seria necessário um debate sobre a quantidade limite de porte.

— Não estamos dizendo que o combate à venda, ao tráfico, é uma questão menor, por isso o porte não seria de qualquer quantidade — disse Gadelha, ressaltando que usuários podem receber tratamento, quando necessário, sem receio de sanções criminais.

Para o presidente da Fiocruz, além disso, não há evidência científica para fundamentar o que distingue drogas lícitas de ilícitas, e isto se dá por disputas políticas e sociais. Ele cita como exemplo álcool e maconha:

— É indiscutivelmente evidenciado que o álcool é muito mais prejudicial, com seus efeitos sobre saúde individual, interações sociais, violência doméstica e acidentes de trânsito — ressaltou, cobrando uma mudança de cultura como a que ocorreu no combate à Aids, um tema também alvo de preconceito, mas hoje com políticas bem-sucedidas.

Para Marcelo Santos Cruz, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, listar os riscos do consumo da maconha é importante para balizar a descriminalização.

— No imaginário social, as drogas são proibidas por causa dos riscos que elas trazem, mas isso não faz sentido. As drogas lícitas oferecem tanto ou mais riscos que as ilícitas — reiterou o pesquisador.

Separar traficantes de usuários é outro tema espinhoso, mas “uma necessidade urgente”, segundo o diretor de Articulação e Coordenação da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, Leon Garcia:

— Talvez seja até um dos assuntos mais urgentes da política de drogas.

Mas não é o único. Garcia diz que as políticas na área precisam avançar, combinando tratamento de saúde e direitos. Ele citou dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, deste mês, e de outros estudos. Neles, o Brasil é o quarto país que mais aprisiona indivíduos entre 20 nações, num total de 600 mil encarcerados. Destes, 27% foram presos por tráfico de drogas, contra 10% em 2007. Entre elas, 87% ocorreram em situação de flagrante, 62% em patrulhamento de rotina, e 97% estavam desarmados.

— Os presos estão na base da pirâmide das organizações criminosas, há uma grande chance de se prender usuários como se fossem traficantes, e os elementos para caracterizar o crime de tráfico são subjetivos e sujeitos a um prejulgamento a partir de estereótipos das forças de segurança — avaliou Garcia.

Uma visão de usuários baseada em estereótipos não é exclusividade das forças de segurança, de acordo com o desembargador Caetano Ernesto Fonseca Costa, diretor da Escola de Magistratura, cobrando que juízes não estejam fechados a estas discussões que fervilham na sociedade.

— Se ele tiver este preconceito, ele será um juiz repressor — afirmou Fonseca Costa. —E a maioria ainda pensa assim.

CIÊNCIA DISTANTE DE DECISÕES PRÁTICAS

No campo científico, Francisco Inácio Bastos — coordenador do Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas, da Fiocruz — critica que as decisões sobre políticas de drogas estão distantes dos dados e avanços sobre o tema:

— Por razões que para mim não são claras, cada vez mais temos uma produção científica refinada, consistente, que ou não é lida ou é desqualificada, porque não se transforma em decisões objetivas.

Ele cita a dificuldade de se produzir estudos com drogas ilícitas, principalmente por questões legais e burocráticas, e cobra uma reavaliação da conjuntura:

— Não existe como desconhecer o sofrimento das outras pessoas. A ciência precisa enfrentar a questão de uma forma não preconceituosa e criteriosa e temos condições de fazer isso.

Enquanto isto, o presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Ivo Bucaresky, afirmou que o órgão não emperra as pesquisas com substâncias ilícitas. Ele ainda comemorou os avanços no último ano em relação à mudança de normas de uso do canabidiol (CBD) por famílias cujos filhos sofrem de tipos raros de epilepsias.

— Foi um debate paradigmático — definiu Bucaresky. — Estive num debate da Câmara de Deputados pouco antes de a Anvisa divulgar a decisão, achei que ia penar bastante, mas mesmo os setores mais conservadores do Congresso estavam convencidos de que era um caso à parte, porque é um medicamento.