Valor econômico, v. 16, n. 3771, 06/06/2015. Internacional, p. A9

 

Inflação já passa de 100% na Venezuela

 

Por Fabio Murakawa | De São Paulo

 

Os graves desajustes da economia venezuelana e a inação do governo de Nicolás Maduro para arrumar as contas públicas trouxeram de volta um fenômeno que a América Latina havia superado há duas décadas: a inflação anual de três dígitos.

O governo não divulga dados oficiais sobre a inflação desde dezembro do ano passado. Em 2014, os preços ao consumidor tiveram alta de 68,5%. Segundo o Bank of America (BofA) e a consultoria venezuelana Ecoanalítica, porém, o país já convive com inflação acima de 100%. Em relatório divulgado no final de maio, o banco americano estimou que a inflação acumulada nos 12 meses até abril tenha chegado a 100,7%.

 

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Levando-se em conta previsões divulgadas recentemente pelos bancos BofA e HSBC, o centro de análises Oxford Economics e as consultorias locais Datanalisis e Ecoanalítica, o cenário mais otimista para o país ao final deste ano é de uma inflação de 120% com retração de 4% do PIB (Produto Interno Bruto). Pelas projeções mais pessimistas, a economia terá contração de 7,5%, com uma alta de 198% nos preços ao consumidor.

"A inflação na Venezuela já é de três dígitos", disse Carlos Miguel Álvares, economista da Ecoanalítica, ao Valor. Ele estima uma inflação anual de 130% para 2015, com queda de 7% do PIB.

De qualquer forma, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o país deve ter em 2015 a maior taxa de inflação do mundo neste ano, à frente de países afetados por conflitos bélicos, como a Ucrânia e o Sudão do Sul.

O recente choque externo nos preços do petróleo, que representa quase a totalidade das exportações do país, afetou duramente a economia venezuelana, que já sofria com sérios problemas estruturais.

Segundo a Oxford Economics, "a inflação acelerou-se neste ano, impulsionada pela queda brusca na taxa média de câmbio, um rápido crescimento da liquidez, altas de salários e uma severa escassez de mercadorias". Para a entidade, "há um claro risco de que o país experimente um longo período de inflação muito alta" e até de hiperinflação, "se o governo não cortar gastos (principal causa da disparada da liquidez)" e se o dólar continuar sua trajetória de elevação.

A última vez que o país teve uma inflação acima de 100% foi no segundo semestre de 1996. Foi também o último episódio de inflação de três dígitos entre as grandes economias latino-americanas.

Com um câmbio artificialmente baixo e um rígido controle de preços de produtos regulados, o país - que importa quase 70% dos bens que consome - já sofria episódios de escassez de divisas para o setor importador e de mercadorias nas gôndolas dos supermercados desde antes de os preços do petróleo começarem a cair, a partir de meados do ano passado.

Desde então, com menos dólares no caixa do governo, os problemas se agravaram. O câmbio oficial de 6,30 bolívares por dólar, usado para a importação de bens essenciais como alimentos e medicamentos, gera uma "demanda infinita" pela divisa. E, dizem economistas, é um estímulo à corrupção e ao desvio de mercadorias para o mercado negro e o contrabando para a vizinha Colômbia.

Há outras três taxas de câmbio oficiais, de cerca de 12, 50 e 200 bolívares por dólar. Mas a distribuição dessas divisas ao setor privado tem sido praticamente nula nos últimos meses. Segundo analistas, o setor privado venezuelano deve mais de US$ 10 bilhões a seus fornecedores no exterior, por não conseguir acesso aos dólares para pagar por suas importações.

A distorção no sistema cambial venezuelano é tão grande que o dólar no mercado negro tem um valor 68 vezes maior do que a menor taxa oficial. E o fato de que o dólar no mercado ilegal subiu de 280 para 431 bolívares do início de maio até a última sexta-feira dá ideia da rapidez com que se agrava a escassez de divisas no país.

Economistas afirmam que uma quantidade cada vez maior de produtos se ajusta ao dólar paralelo, dada a escassez de divisas.

Segundo o BofA, a rápida aceleração dos preços é motivo de preocupação para os detentores de bônus venezuelanos, "pois é sinal de que o governo está ficando sem fontes de receita". "Enquanto a inflação se acelera a um território mensal de dois dígitos, a capacidade do governo de se financiar via monetização do déficit começa a se erodir", diz o banco em relatório de 27 de maio. "No caso venezuelano, essa preocupação é de alguma forma amenizada pelo fato de as autoridades ainda terem a opção de apelar a ajustes no câmbio e nos preços relativos, em vez de dar um calote na dívida externa."

Esses ajustes no câmbio, porém, vêm sendo aguardados desde antes da morte do presidente Hugo Chávez, em 5 de março de 2013. Mas o governo de seu sucessor, Nicolás Maduro, tem apelado a controles mais rígidos de preços e do câmbio e a blitzes contra fábricas e redes varejistas, em vez de tomar uma decisão que todos consideram "politicamente difícil".

Analistas afirmam que uma mudança no câmbio só deve ocorrer após a eleição parlamentar, prevista para o final do ano.