Lideranças em xeque no parlamento fragmentado

21/06/2015
PAULO DE TARSO LYRA

Votações recentes evidenciam a propagação da infidelidade partidária, especialmente na Câmara, onde muitos deputados têm ignorado as orientações das próprias legendas. Nesse cenário, cresce a influência de bancadas temáticas, como a do agronegócio e a evangélica

A crise de lideranças políticas fortes no Congresso, somada a um contingente de parlamentares escolhidos mais por serem puxadores de votos do que pelos compromissos programáticos e ideológicos com as legendas às quais se filiaram, tem levado a um sucessivo aumento na infidelidade das bancadas nas votações no Legislativo federal. O nível de traição não se verifica apenas nas relações entre a base governista e o Palácio do Planalto — em votações específicas, como a reforma política, a orientação das lideranças partidárias não tem sido seguida à risca nem mesmo entre os partidos de oposição (veja quadro ao lado). Com isso, cresce a influência de bancadas temáticas, como a ruralista e a evangélica.

No caso da análise sobre o fim das coligações, por exemplo, o líder do PMDB na Câmara, Leonardo Picciani (RJ), orientou a bancada a se manifestar contra a iniciativa, mas 66% dos deputados peemedebistas votaram a favor da proposta. Quando o plenário da Câmara analisou o projeto do “distritão” — segundo o qual os parlamentares mais votados, independentemente de coligações ou partidos, serão aqueles que tomarão posse —, o Solidariedade encaminhou voto “sim”, mas quase 36% dos deputados votaram diferente da orientação. “A reforma política, como está sendo feita aqui na Câmara, vai aprofundar ainda mais isso. Estamos destruindo os partidos e ameaçando a democracia brasileira”, disse o deputado José Carlos Aleluia (DEM-BA).

O próprio Aleluia, que já comandou a bancada, recentemente desrespeitou uma orientação do líder do DEM, Mendonça Filho (PE), ao votar com o governo nas mudanças propostas no seguro-desemprego e nas pensões por morte. Segundo ele, votou por convicção sobre a necessidade de um ajuste para colocar as contas em ordem. “Nós conversamos com ele (e com os demais deputados que votaram da mesma forma), mas não conseguimos alterar a posição”, disse, à época, Mendonça Filho.

Aleluia acredita que o atual modelo eleitoral impede que as pessoas discutam programas de governo. “O que está ditando as coisas é o tempo de televisão e o Fundo Partidário, o que individualiza as candidaturas. Esse processo de apostar tudo na televisão está deseducando a população brasileira”, criticou o parlamentar baiano.

Deputado conhecido por ter opiniões fortes, Júlio Delgado (PSB-MG) afirma que há um decréscimo na qualidade do debate legislativo atual. Ele admite que um dos principais problemas é que o Congresso, especialmente a Câmara, tem se tornado cada vez mais corporativo, com representantes específicos de setores da sociedade que não conseguem pensar na macropolítica para o país. “Temos cada vez mais sindicalistas, militares, ruralistas e representantes da Saúde, e menos parlamentares capazes de pensar em saídas para os grandes problemas do país”, lamenta.

Delgado afirma ainda que a chegada de deputados novos, com pouca experiência política, faz com que haja uma dificuldade grande de seguir as orientações das lideranças de bancada. “Tirando alguns líderes, como o Jovair Arantes (GO), que consegue ter alguma ascendência sobre a bancada, vemos outros casos de lideranças com extremas dificuldades em impor suas visões”, completou o deputado socialista, citando, por exemplo, o tucano Carlos Sampaio (SP), que sofre com a divisão interna na bancada entre deputados ligados ao senador Aécio Neves (MG), ao senador José Serra (SP) e ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.

Puxadores de voto
Para o diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antonio Augusto de Queiroz, os partidos também têm ficado reféns de outro problema. Para reforçar o tempo de televisão e o Fundo Partidário, eles se veem obrigados a trazer candidatos puxadores de votos que nem sempre têm compromisso com as bandeiras políticas da legenda. “Ao convencer, por exemplo, o ex-presidente do Corinthians Andrés Sanchez a se candidatar a deputado federal, o PT abre espaço para que ele vote de acordo com as próprias convicções”, disse Queiroz.

O cientista político Carlos Melo, do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, prefere não colocar a responsabilidade apenas nos liderados, mas também na incapacidade dos líderes de convencerem as próprias bancadas. “Temos uma carência de líderes no mundo, que dirá aqui. Muitos daqueles que estão em postos de comando hoje são apenas representantes de interesses. Intelectuais, empresários e representantes da sociedade se afastaram da política”, disse Melo. Durante palestra no UniCeub, na quinta-feira, o senador José Serra disse que nunca se conformou com a tese de que a política é a arte do possível. “Para mim, a política é a arte de estender os limites do possível”, disse ele. “Serra é de uma outra geração que, infelizmente, está em falta na política atual”, disse Melo.




"Temos cada vez mais sindicalistas, militares, ruralistas e representantes da Saúde, e menos parlamentares capazes de pensar em saídas para os grandes problemas do país”
Júlio Delgado (PSB-MG), deputado




Traições em alta

As lideranças partidárias já não conseguem convencer os aliados a seguir a orientação de voto. A infidelidade se dá em matérias de interesse de governo e até naquelas em que não há demanda do Palácio do Planalto

Nível de fidelidade ao Planalto em assuntos de interesse do governo

Câmara Senado
Março 38,34% 40,74%
Abril 40,11% 57,09%
Maio 51,75% 47,26%

Confira o nível de fidelidade às lideranças
em três votações da reforma política

» Sistema eleitoral distritão

PMDB: Apesar da orientação para aprovar a matéria, 21,3% dos deputados da bancada votaram “não”
DEM: 21,05% da bancada de deputados votou “não”, contrariando a orientação do partido de aprovar o texto
SD: Embora a orientação tenha sido pelo “sim”, 35,29% da bancada votou “não”
PSC: a orientação era aprovar o projeto, mas 27,2% da bancada votou contrariamente ao texto
PV: mesmo com a orientação para rejeitar o tema, 37,5% da bancada votou favoravelmente ao distritão
PRP: a orientação para rejeitar o projeto não foi seguida por 66,67% da bancada

» Fim das coligações

PMDB: 66,07% da bancada votou “sim”, apesar da orientação em contrário
PT: orientou que os deputados rejeitassem o tema, mas 26,2% da bancada votou “sim”
PP: 34,29% da bancada votou “sim”, contrariando a orientação da liderança do partido
PTB: orientou que o tema fosse rejeitado, mas 26,32% da bancada votou “sim”
PV: a orientação pelo “não” deixou de ser acatada por 28,57% da bancada

» Voto facultativo

PSDB: orientou pelo “não”, mas 35,29% da bancada votou “sim”
PSD: 33,3% da bancada votou favoravelmente à matéria, ignorando a orientação partidária
SD: quis que a bancada rejeitasse o tema, mas 45,4% dos deputados votaram “sim”
PV: orientou que os deputados aprovassem o projeto, mas 42,86% da bancada votou “não”

Conheça alguns grupos suprapartidários que influenciam votações, independentemente das orientações das legendas

Bancada da saúde — Formada por parlamentares médicos e outros profissionais ligados à área
Bancada da segurança pública — Composta por delegados, PMs, policiais civis e bombeiros
Bancada evangélica — Parlamentares ligados às igrejas evangélicas
Bancada da bola — Ligada ao mundo do futebol; muitos desses parlamentares são dirigentes ou ex-diretores de federações ou de times de futebol
Bancada ruralista — Empresários ligados ao agronegócio.