Crime de responsabilidade e impeachment

 

Crimes de responsabilidade são atos atentatórios à Constituição – definidos em lei especial, por exigência de norma constitucional expressa (artigo 85, § único), que também estabelece normas de processo e julgamento, visando a fixar parâmetros jurídicos e garantias para o julgamento político, sem, no entanto, se equiparar ao processo judicial. O objetivo da norma constitucional é evitar julgamentos meramente “político-partidários”, pois o presidente da República não pode – diferentemente do regime parlamentarista – ser afastado do cargo antes do término do mandato por moção de desconfiança do Parlamento. E o presidente poderá ser absolvido no processo penal, mas condenado no processo de impeachment, como ocorreu com o ex-presidente Fernando Collor, o que demonstra per se a diferença da natureza dos respectivos processos.

No processo de impeachment não há propriamente pena, mas sanção política, a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. O presidente da República não poderia ser punido duas vezes pelo mesmo ato, se se tratasse de crime, o que constituiria bis in idem ou, conforme a expressão do Direito norte-americano, “double jeopardy”, vedada pela 5.ª Emenda à Constituição americana. Como observa Tribe, de Harvard, a natureza política do processo de impeachment afasta a aplicabilidade da mencionada vedação constitucional. Na linha de seu raciocínio, se o processo de impeachment é de natureza política, também as ofensas suscetíveis de submissão a tal processo devem sê-lo.

No constitucionalismo norte-americano, a expressão “high crimes and misdemeanors” é objeto de questões hermenêuticas. A Suprema Corte tem reconhecido que a base constitucional para o impeachment do presidente pelo Congresso se encontra em “great offenses”, no sentido do “common law”, que impliquem “gross breach of trust” ou “serious abuse of power”. Aliás, antes mesmo da Convenção de Filadélfia, que elaborou a Constituição americana, Hamilton afirmava a natureza política do impeachment que preconizava e das ofensas a ele sujeitas, considerando-as injúrias à sociedade mesma e definindo a má conduta dos homens públicos como “abuse” ou “violation of public trust”.

No Brasil também somente infrações graves, penais ou político-administrativas, podem constituir fundamento constitucional para o impeachment do presidente da República. Se este comete crime contra a administração pública, estará incidindo, simultaneamente, em crime comum e crime de responsabilidade, devendo ser processado e julgado respectivamente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Senado.

O presidente Collor, denunciado pela prática de crime de corrupção pelo procurador-geral da República, foi absolvido pelo Supremo Tribunal, sendo, porém, condenado pelo Senado, mesmo após a renúncia, limitando-se a condenação à inabilitação por oito anos para o exercício de qualquer função pública. Como o chefe de governo deve zelar pela probidade na administração (Constituição federal, artigo 85, V), adotando as medidas necessárias para “tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”; se não o fizer, poderá ser condenado por crime de responsabilidade, ainda que não tenha praticado crime comum, por omissão ou ainda por “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (Lei 1.079/50, artigo 8.º, incisos 3 e 7).

Nos Estados Unidos, o presidente Andrew Johnson foi submetido a processo de impeachment em 1867, iniciado na Câmara dos Deputados (House of Representantives), sob o fundamento de que havia tentado destituir o secretário Stanton (secretary of War Stanton), em aparente violação de lei do Congresso americano que lhe assegurava estabilidade (Tenure of Office Act of 1867). No Senado escapou de ser condenado por um voto. A História revela, porém, que a tentativa de afastar Johnson do cargo foi arbitrária, pois se ignorou durante o processo que a lei descumprida por Johnson era largamente considerada inconstitucional antes de ser declarada como tal pela Suprema Corte no caso Myers v. United States. Não houve nenhuma acusação pela prática de crime comum.

O presidente Richard Nixon foi submetido a processo de impeachment em julho de 1974 mediante três acusações básicas (Articles of Impeachment): obstrução da Justiça, violação do juramento constitucional e desobediência a notificações (subpoenas) do Comitê Judiciário da Câmara. As acusações disseram respeito à invasão do edifício Watergate, em Washington, sede do comitê eleitoral do Partido Democrata. A primeira referia-se à conduta do presidente de se engajar, pessoalmente e por intermédio de seus subordinados, em plano para postergar, impedir e obstruir as investigações do caso Watergate. A segunda constituiu-se na violação do seu juramento de respeitar a Constituição e do seu dever constitucional de cuidar para que as leis fossem fielmente cumpridas. E a terceira tratou da recusa em entregar documentos e fornecer informações ao Comitê Judiciário da Câmara. Só a primeira das três acusações e pequena parte da segunda lidaram com alegadas violações da lei penal federal. Nixon renunciou em 9 de agosto de 1974, após a decisão da Suprema Corte que determinou a entrega das informações e dos documentos ao Comitê Judiciário da Câmara, tornando virtualmente inevitável sua condenação pelo Senado e a remoção do cargo de presidente.

Finalmente, a imunidade do presidente por “atos estranhos” ao exercício de suas funções não exclui sua responsabilidade política por infrações graves que configurem abuso de poder ou quebra de confiança pública (Lei n.º 1.079/50, artigo 9.º, 7).