Em mais um capítulo da crise no governo Dilma Rousseff, aliados ameaçam partir para uma briga judicial para fazer valer as novas regras de renegociação das dívidas com a União, cuja lei foi sancionada em novembro do ano passado. Por conta da necessidade do ajuste fiscal, a presidente e a equipe econômica estão adiando a aplicação da regra e descumprindo acordos com prefeitos e governadores. A mudança no cálculo resultaria no abatimento significativo do estoque de suas dívidas e na consequente ampliação da capacidade de investimentos.

A prefeitura do Rio foi a primeira a reagir. Entrou na Justiça para tentar obrigar o governo federal a cumprir a lei sancionada no ano passado. Com a mudança no cálculo, a dívida do município, que é de R$ 6 bilhões, poderia ser quitada em pouco tempo. Para tentar convencer a presidente, o prefeito Eduardo Paes, aliado da petista, embarcou ontem à noite para Brasília.

Antes de recorrer ao Judiciário, Paes questionou o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, sobre a validade da lei e obteve como resposta que a União precisava de mais tempo para mudar os contratos. Como o prazo pedido pelo ministro estourou na semana passada, Paes entrou com a ação.

Encruzilhada para o governo

Na negociação das dívidas, Dilma está numa encruzilhada. Ao mesmo tempo em que sofre a pressão de prefeituras e governos asfixiados, é vigiada de perto pelo mercado financeiro. A mudança no cálculo é vista por analistas como uma atitude perdulária em tempos de crise financeira e, segundo eles, pode comprometer as notas do Brasil dadas pelas agência de risco. Ontem, ao defender os cortes do ajuste fiscal, Dilma lançou o lema "gastar menos com Brasília para gastar mais com o Brasil", justificando a necessidade de reduzir gastos da máquina para manter investimentos sociais.

A situação mais embaraçosa para o governo é com a Prefeitura de São Paulo, administrada pelo petista Fernando Haddad. A dívida, de R$ 62 bilhões, é praticamente impagável nos atuais termos e impede que o município contraia novos empréstimos. A mudança no cálculo foi prometida por Dilma a Haddad mais de uma vez e afeta diretamente o desenvolvimento da cidade - maior vitrine petista no país.

São Paulo estuda que caminho tomar. Segundo fontes ligadas à gestão municipal, uma das alternativas é pegar uma carona na ação movida por Paes, participando como parte solidária. A medida, no entanto, seria encarada como fogo amigo, vindo de um aliado estratégico para o futuro do PT.

O motivo da chiadeira é claro. Pelo texto sancionado, o índice de refinanciamento das dívidas estaduais e municipais passa a ser corrigido pela taxa Selic ou pelo IPCA, o que for menor, mais 4% ao ano. Hoje, elas são corrigidas pelo IGP-DI mais 6% a 9%, o que é mais custoso para os governos regionais. A troca de índice foi defendida pelos governadores e prefeitos como uma fórmula de amenizar o quadro crítico das finanças regionais por reduzir consideravelmente a parcela paga mensalmente à União.

A revisão dos estoques da dívida, que não era parte do projeto original, foi incluída no texto com apoio do governo federal para beneficiar diretamente o município de São Paulo, comandado por Haddad (PT). A cidade poderá abater de seu estoque R$ 26 bilhões, reduzindo o volume de R$ 62 bilhões para R$ 36 bilhões, segundo informações da própria prefeitura.

- Essa mudança era a nossa salvação - disse um cacique do PT de São Paulo.

No PT paulistano, o entendimento é que sem a redução da dívida ficará difícil recuperar a imagem de Haddad antes da eleição do próximo ano. A última pesquisa Datafolha, divulgada em fevereiro, registrou o aumento da desaprovação ao governo do petista. O total de eleitores que avaliam o governo como ruim ou péssimo subiu de 28% para 44%, em relação ao levantamento de fevereiro.

Na queda de braço com o governo, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), defendeu ontem que estados e municípios recorram à Justiça para fazer valer a nova regra.

- Se os estados não tiverem a aplicabilidade da lei, eles saberão buscar sua forma judicial para poder implementá-la - afirmou Cunha.

Para o presidente da Câmara, que relatou a medida em 2013, a mudança no indexador seria "autoaplicável". Cunha disse, no entanto, que é preciso que o governo assine os contratos aditivos com estados e municípios, com o índice corrigido, para que os novos valores de cobrança sejam aplicados. Emissários da presidente Dilma têm dado sinais de que o governo não pretende permitir que a lei seja aplicada tão cedo.

- O que o governo tem que fazer em relação àquela lei, que já está em vigor, é assinar os contratos aditivos com os entes federados, nos quais serão mudados o indexador, e passar a cobrar pelo novo contrato. Aquilo não precisaria nem de decreto na minha opinião. O que depende de regulamentação é a contração de novos financiamentos - disse Cunha.

A lei que foi aprovada e sancionada no ano passado autoriza o governo a mudar o indexador das dívidas. No entanto, técnicos do governo defendem que, para essa mudança valer, seria preciso a edição de um decreto presidencial e a assinatura dos aditivos que terão que ser negociados entre a União e governadores e prefeitos. Isso porque a legislação apenas autoriza o governo a rever os contratos e aplicar o novo indexador, mas não se aplica de imediato.

Mudança veio de pressões

Resultado de mobilização de governadores e prefeitos no meio das eleições do ano passado, a mudança do indexador acabou entrando na conta do ajuste fiscal. Dilma tem sinalizado a integrantes do governo e ao presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), desde a semana passada, que não regulamentará a lei.

Dilma se mostrou resistente à medida desde que o projeto chegou ao Congresso, em janeiro de 2013. A mudança de indexador é um pedido antigo de governadores e prefeitos, nunca atendido. Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva enfrentaram a mesma pressão, mas conseguiram segurar a tramitação no Senado.

Em meio às eleições de 2014 e pressionada pelos governadores da base aliada, entre eles o petista Tarso Genro (RS), que liderou a mobilização pela troca de índice, Dilma cedeu, o Senado aprovou e ela sancionou a lei, já reeleita.

O governo do Rio Grande do Sul, que tem uma dívida de R$ 47 bilhões com a União, recebeu mal a informação de que o projeto de regulamentação não será enviado ao Congresso. O secretário da Fazenda, Giovani Feltes, previu mais dificuldades para quitar os compromissos financeiros do Estado, entre os quais a folha de pagamento de março, que tem de ser paga constitucionalmente na semana que vem.

Segundo Feltes, o estado perde capacidade de abrir novas fontes de financiamento da ordem de R$ 1,8 bilhão sem a reestruturação da dívida.

- Aumenta um bocado as nossas dificuldades, que já são bastante graves. Sem a reestruturação, não temos como lançar mão de novos mecanismo para cobrir nosso déficit - lamentou.

O ex-governador Tarso Genro (PT), que teve papel decisivo na renegociação em 2014, disse que não ficou surpreso com a decisão.

- A reestruturação só foi obtida após um processo muito difícil de negociação, inclusive contra a vontade do então ministro da Fazenda Guido Mantega. Dobramos o governo somente a partir de uma articulação nacional forte - lembrou o ex-governador.

Segundo ele, para reverter a decisão será necessário rearticular essa pressão junto à equipe econômica e ao núcleo político do governo federal.

 

UMA RECEITA PARA CENTRALIZAR RECURSOS

 

Ao adiar a mudança do indexador das dívidas dos estados e municípios com a União, o governo mostra que está, na verdade, centralizando receitas. Isso já tinha ocorrido com os recentes aumentos tributários, feitos majoritariamente com contribuições, que não entram na divisão dos fundos de participação de estados e municípios, compostos por impostos. Além disso, em janeiro, Dilma sancionou o aumento do teto do funcionalismo público, ao autorizar que o salário do ministro do Supremo Tribunal Federal fosse a R$ 33,7 mil mensais, impactando, em cascata, todas as folhas de pagamento de servidores públicos pelo país.

O Brasil pode ter conseguido ontem manter o "grau de investimento" das agências de "rating" por mais um tempo. Tem condições, inclusive, de entregar em dezembro o superávit prometido ao mercado - mas cada vez mais especialistas esperam o uso da velha artimanha de jogar nos "restos a pagar" as despesas do fim de 2015, embora existam limites para este estratagema. As estatais estão sem condições de auxiliar com lucros remetidos ao governo - basta a ver as contas da Petrobras, Eletrobras e Infraero para ver como as empresas estão sem condições de socorrer o caixa da União, como fizeram no primeiro mandato de Dilma. Sobra para os governos locais. Para não perder esta receita que sai do caixa dos estados e municípios, a União impede que eles tenham um respiro para fazer novos investimentos, o que seria fundamental para a retomada do emprego e do crescimento econômico. Seria o "bom gasto público", ao contrário das despesas de custeio.

Ao afirmar que pretende gastar "menos com Brasília e mais com o Brasil", a retórica federal tenta convencer a população que este forte arrocho que o país tem de fazer, impopular por natureza, não vai ser tão sentido pelo povo, mas sim focado na burocracia do governo. Por esta abordagem oficial, planos sociais seriam poupados, mantendo o país na "normalidade".

Esse discurso está tão distante da realidade como esteve a intenção da presidente em dialogar com a oposição, conforme disse na noite em que foi reeleita.

Esse descasamento de receitas e pesos distintos no esforço fiscal do país geram mais problemas na delicada sustentação política de Dilma Rousseff, mas prejudica ainda mais o prefeito petista de São Paulo, Fernando Haddad, sem limite para contratar novos investimentos pela atual regra, ou seja, impacta no maior colégio eleitoral do país e calcanhar de aquiles da popularidade do governo e do PT.

Os estados ainda terão um respiro com a forte alta da conta de luz que aumenta a arrecadação do ICMS, algo que tem impacto reduzido - ou até negativo - para as prefeituras, que arcam com as despesas de iluminação pública.