Vivemos hoje uma crise grave no setor elétrico. Quer você queira ou não, quer o governo queira ou não, a crise existe, é real e já provocou um rombo bilionário sem precedentes, que nos leva a duas questões: como contornar a crise energética de curto prazo e como corrigir os fatores latentes que geraram as crises energética e financeira? As causas de ambas as crises têm raízes em um conjunto de fatos que isoladamente parecem ser inofensivos, mas que, em conjunto, criam um ambiente regulatório instável e de perigosos incentivos, os quais oferecem um real dano à economia e à sociedade.

O nosso sistema elétrico foi concebido para tirar proveito da vasta disponibilidade de recursos hídricos que temos. Quando os reservatórios estão cheios, a participação das hidrelétricas no atendimento ao consumo ultrapassa os 90%. Entretanto, como as vazões dos rios e chuvas são incertas, precisamos de termelétricas para complementar a operação e ajudar a economizar água em momentos de hidrologia adversa. Mas essas térmicas respondem por menos do que 30% do consumo.

O Brasil depende basicamente da gestão dos estoques de água nos seus reservatórios para atender ao consumo de eletricidade. Para enfrentarmos a alternância entre períodos úmidos e secos de maneira segura, os modelos computacionais utilizados pelo operador nacional do sistema (ONS) precisam representar fidedignamente o sistema elétrico e hídrico para simular o que pode acontecer em cada possível cenário hidrológico ao longo do ano.

Caminhamos para uma conjuntura onde a chance de termos que racionar já ultrapassa a incrível marca dos 50%

Em 2012, o sistema elétrico já havia dado um segundo alerta, depois de 2010, de que algo estava errado na maneira com que a operação dos reservatórios estava sendo realizada. O caso de 2012 é emblemático, pois iniciamos o ano com um recorde histórico de maior armazenamento (superior a 70%) e terminamos o ano também com um recorde histórico, porém inverso: o mais baixo armazenamento (cerca de 30%). O intrigante é que as afluências nesse ano não foram severamente secas, apenas um pouco abaixo da média. E então nos perguntamos: o que levou a esse esvaziamento dos reservatórios em 2012?

Parte dessa resposta está na maneira com que planejamos o uso da água dos reservatórios para produzir eletricidade. Os modelos computacionais de planejamento da operação utilizados pelo ONS atualmente sofrem para aproximar a realidade operativa de maneira satisfatória. Como resultado, o planejamento se torna míope e a operação estruturalmente arriscada.

Podemos resumir quatro pontos de melhorias para esses modelos que deveriam ser analisados. Os dois primeiros são de caráter técnico/computacional:

1 ­ diversas restrições operativas reais do sistema elétrico, tais como restrições de transmissão e segurança, restrições individuais de cada reservatório e cascata hídrica são extremamente simplificadas no modelo computacional que planeja o uso da água;

2 ­ o modelo de previsão de afluências da região Nordeste superestima sistematicamente (há 20 anos) a quantidade de água que chega nesta região e o mesmo ocorre para a geração de energia proveniente das usinas de biomassa, pequenas hidrelétricas e eólicas. Já os dois últimos são de caráter técnico/regulatório:

3 ­ a regulação não emprega mecanismos eficientes de incentivo para que as empresas informem os dados técnicos mais precisos sobre suas usinas e, infelizmente, também não impõe que o ONS realize auditorias sistemáticas em muitos dos dados relevantes para garantir a aderência dos modelos à realidade e

4 ­ por fim, os sistemáticos atrasos no cronograma de expansão e a não consideração deles nos modelos fazem com que estes não economizem água, imaginando um futuro onde a data de entrada em operação das novas usinas e linhas de transmissão serão sempre cumpridas.

crise eletrica 2015No contexto atual, os modelos indicam sempre estoques de água mais otimistas do que deveriam, imaginando um futuro sempre mais farto e simples do que a realidade. Outro ponto relevante e pouco falado é a baixa eficiência de produção das hidros quando operadas com reservatórios vazios. Nesta situação, é necessário um volume maior de água, se comparado ao que seria necessário em níveis normais de armazenamento, para se produzir o mesmo Megawatt­hora de energia. Ou seja, quanto pior a situação, mais difícil e cara se torna a recuperação.

Desde julho de 2014 já temos indicações técnicas para empregar algum tipo de mecanismo preventivo de redução do consumo. Mas o governo nega qualquer possibilidade, apostando em uma reversão mesmo vivendo um cenário nunca antes visto. Hoje, infelizmente, caminhamos para uma conjuntura onde a chance de termos que racionar já ultrapassa a incrível marca psicológica dos 50%; dados recentemente divulgados por consultores especialistas que consideram, obviamente, hipóteses e dados diferentes dos oficiais em suas análises.

Quando não conhecemos algo, o padrão é sermos mais cautelosos do que o normal. O fato de estarmos lidando com uma situação de seca severa confirmada desde 2014 nos dá a prerrogativa de apostar na reversão ou nos impõe o dever de nos prepararmos para o pior? Se você é um pai de família que perde o emprego e, depois de um ano gastando as economias sem um novo emprego, você continuaria saindo para jantar e mantendo o seu antigo padrão de vida, como se nada estivesse acontecendo?

Diversos Estados já estão racionando água. Os principais reservatórios do Sudeste já tangenciam o limite crítico de 10% de segurança. Reservatórios importantes como o de Ilha Solteira ultrapassaram tal limite e as suas usinas foram desligadas. O grande problema agora é que não existe uma placa que avise o fim da linha. Não há uma metodologia oficial, transparente, reprodutível e auditada, para se calcular um índice de escassez energético que aponte para a necessidade ou não de um racionamento.

É o mesmo que não termos um índice de inflação para podermos reivindicar e pressionar governantes, com nossas próprias percepções. Em última análise, isso cria uma enorme distância entre agentes egoverno, trazendo mais incerteza para um setor que depende de sua atratividade para se sustentar.

Alexandre Street é professor do Departamento de Engenharia Elétrica da PUC­Rio.