A forte desvalorização cambial nos últimos meses aliada às previsões de um dólar médio ao redor de R$ 2,72 em 2015 tem potencial para causar uma grande dor de cabeça aos novos governantes de Estados cuja política fiscal dos últimos anos estimulou um rápido processo de endividamento externo. Só em 2014, período em que o dólar comercial subiu um pouco mais de 13%, essa dívida subiu mais de dois pontos percentuais, segundo dados do Banco Central.

Dentro da dívida externa bruta de longo prazo do setor público, a fatia da dívida contraída em dólar por Estados e municípios chegou a 23% em dezembro para um total de US$ 28,758 bilhões. Em fins de 2013, essa parcela ficava em 20,7% do endividamento externo do setor público. Logo depois da crise 2008, e um pouco antes desses empréstimos ganharem mais força, essa fatia era de apenas 9,7%.

Estimulados por taxas de juros bem mais atrativas, Estados e municípios trocaram dívida com o governo federal por juros bem mais baixos oferecidos pelo Banco Mundial (Bird), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e por bancos privados internacionais, dentre outros, em operações que pareciam ser uma excelente oportunidade quando o câmbio era favorável e se mexia muito pouco.

Segundo dados do Banco Central, do volume total tomado externamente por Estados e municípios registrado em dezembro do ano passado, 77,1% vieram de organismos internacionais, 13,3% de bancos, 4% de agências governamentais, dentre outros credores.

Todas as operações foram feitas com o aval do próprio governo, pois Estados e municípios só conseguem fazer empréstimos externos com garantias do Tesouro. De uma maneira paradoxal, Estados e municípios que têm se mostrado financeiramente mais equilibrados são justamente os que mais devem sofrer com a mudança de cenário do câmbio, segundo analistas, pois foram os que mais recorreram a esses empréstimos em um processo que ficou mais forte a partir de 2011.

Em dezembro de 2013, Minas Gerais e São Paulo tinham os maiores volumes de dívida externa (em reais), de R$ 9,4 bilhões e R$ 7,8 bilhões, respectivamente. No caso de São Paulo, porém, o endividamento tinha pouca expressão tanto como proporção da receita líquida quanto sobre a dívida consolidada do Estado.

Em termos proporcionais, Bahia (23%), Minas Gerais (21,8%) e Pernambuco (21,8%) eram os Estados mais endividados em proporção de suas receitas líquidas - a noção do quanto se deve com relação à capacidade do Estado de gerar receita, portanto, de pagar. Já Ceará (39%), Maranhão e Amazonas (com 35,4% cada) eram os Estados em que a dívida externa tinha maior participação no total de sua dívida consolidada, segundo o levantamento conduzido por José Roberto Afonso e Vilma Pinto, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), e por Fabricio Santos, especialista em finanças públicas.

Na avaliação de Afonso, do Ibre, o governo federal praticamente "empurrou" os Estados para o endividamento externo, durante todo o tempo em que optou por não rever as condições "draconianas" da dívida com esses entes, em movimento muito similar ao ocorrido na década de 1980. "É menos grave, mas o processo é o mesmo", diz.

Para o secretário da Fazenda do Estado do Ceará, Mauro Benevides Filho, que entra em seu terceiro mandato à frente da secretaria, os números devem ser olhados com cuidado, pois o mais importante é saber se o nível de endividamento do Estado está dentro dos limites estabelecidos em lei - como ocorre com o Ceará. "Se a dívida externa é 35%, 39% ou 43% da dívida consolidada, para nós isso é irrelevante, já que o tamanho da dívida consolidada líquida sobre a receita é pequeno. Nesse sentido, acho 39% bem ok", afirma ele. A participação da dívida externa sobre a receita do Estado, contudo, alcança 20,5%.

O Amazonas reconhece que, de 2010 a 2014, a dívida externa do Estado aumentou em percentuais maiores do que as variações do dólar. Por meio de sua assessoria de imprensa, o secretário Afonso Logo afirma, no entanto, que o endividamento ocorreu porque o Estado ampliou muito seus investimentos em infraestrutura, aproveitando a grande capacidade de endividamento para tomar recursos a juros baixos, com consideráveis prazos de carência - um movimento comum àqueles que optaram em se endividar em moeda estrangeira.

Consultor do Senado e autor do livro "Por que o Brasil não cresce", Marcos Mendes avalia que, diante da alta do risco cambial, uma dívida externa acima de 30% da dívida consolidada já é bastante preocupante, porque os governos não geram receita em dólar e enfrentam muitas limitações para se proteger das oscilações.

"Em qualquer operação, os Estados têm que pedir autorização ao Senado e à Secretaria do Tesouro. É uma coisa muito quadradinha e é até bom que isso aconteça pois, do contrário, teríamos um monte de artistas fazendo malabarismos e deixando buracos para o governo sucessor".

Como uma medida de proteção contra as oscilações da moeda americana, Afonso, do Ibre, lembra ainda que Estados e municípios deixaram de contar com o que poderia funcionar como um hedge natural destas operações: a arrecadação do ICMS sobre exportações. Desde 2006, Estados e municípios não cobram o imposto sobre as exportações. "O problema todo é um governo se endividar em dólares quando não se tem receitas em dólares e, o principal, quando não pode se proteger como uma empresa", diz Afonso. Nesse caso, diz ele, as receitas de royalties de petróleo seriam uma exceção, o que favoreceria Estados como o Rio de Janeiro, embora os preços de petróleo estejam em queda livre.

Francisco Lopreato, professor do Instituto de Economia da Unicamp, concorda que os Estados captaram a maior parte dos recursos em momentos de câmbio muito favorável, logo, à medida que o câmbio se desvaloriza, o custo dos financiamentos vai crescer. "A avaliação que esses Estados fizeram um, dois ou três anos atrás talvez não se sustente mais".

Para Lopreato, a combinação de um PIB menos robusto que deve causar queda na receita dos Estados mais a ampliação do custo do financiamento externo pode representar perda para os governos estaduais. "Mas a dívida ainda é relativamente pequena e tem o aval da União, que conta com grande volume de reservas". A questão, diz ele, é que "gato escaldado" precisa ficar atento, sobretudo em uma situação em que o câmbio tende a se desvalorizar um pouco mais, em sua avaliação. "Mas não há o menor risco de incapacidade de pagamento da dívida externa pública, como aconteceu nos anos 1980".