O apoio dado pelas igrejas do Brasil ao golpe militar de 1964 e, mais tarde, à consolidação da ditadura, terá destaque no relatório final da Comissão Nacional da Verdade - que será entregue à presidente Dilma Rousseff na quarta-feira. A informação é do coordenador do grupo de trabalho encarregado de analisar a questão religiosa naquele período, o cientista social Anivaldo Padilha.

Em entrevista ao Estado, ele observou que já existe grande quantidade de estudos e pesquisas sobre as perseguições sofridas pelas igrejas e a resistência de religiosos e leigos à ditadura. O colaboracionismo, porém, ainda teria sido pouco estudado. "Lideranças religiosas católicas e protestantes apoiaram o golpe e contribuíram em seguida para a legitimação e consolidação da ditadura", afirmou.

Arquivo/Estadão - 31.10.1975

D. Evaristo Arns (centro) e d. Hélder Câmara (dir.) na missa pelo jornalista Vladimir Herzog

 

 

 

"Nós já sabíamos, desde o início, do papel importantíssimo que as igrejas tiveram, às vésperas do golpe, na disseminação da ideologia anticomunista, provocando medo e pânico em alguns setores da sociedade. Nesse sentido foram absolutamente responsáveis por criar o clima político que possibilitou o golpe. Agora, porém, obtivemos mais detalhes, chegamos a casos de padres e pastores que denunciaram membros de suas igrejas, fiéis e até colegas."

 

Segundo Padilha, o relatório da comissão terá nomes dos delatores. Ele não quis citar nenhum, afirmando que faz parte de um acordo com a coordenação-geral da Comissão Nacional, pelo qual as informações só poderão ser divulgadas após a entrega do relatório a Dilma.

 

"Nós tivemos acesso a um documento que revela que um bispo e um pastor metodista se ofereceram para ser informantes da polícia", contou. "Mas esse não foi um caso isolado. Aconteceu em outras igrejas."

 

Pai do ex-candidato petista ao governo de São Paulo, Alexandre Padilha, Anivaldo Padilha, que militou na juventude metodista e na Ação Popular, sendo depois preso e torturado, disse que um pastor metodista sabia das prisões e das torturas. "O que se viu muito naquele período foram opções ideológicas - e não o resultado de ignorância ou falta de informação", afirmou.

 

Lei da Anistia dividiu as opiniões no grupo desde sua formação

 

Na série de recomendações que a Comissão Nacional da Verdade fará ao Estado brasileiro, em seu relatório final, só uma questão não teve unanimidade nas votações internas. Foi a que envolve a Lei da Anistia, promulgada em 1979.

Dos sete integrantes do grupo, seis votaram a favor da proposta para que seja retirado o benefício da anistia aos agentes de Estado que cometeram graves violações de direitos humanos nos anos da ditadura. Eles recomendam que os autores de crimes como tortura, execução sumária e desaparecimento forçado sejam responsabilizados nas áreas cível, criminal e administrativa.

 

O único voto contrário foi o do advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. A pedido dele, o relatório final conterá um parágrafo com o registro de que não seguiu a maioria. Ele argumentou que a comissão deveria acatar a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que pedia a revisão da Lei da Anistia. Naquele julgamento, em 2010, o Supremo decidiu que o pedido era improcedente e que a anistia aos agentes de Estado deveria ser mantida.

 

Cavalcanti Filho tem 66 anos e atua na área criminal. Foi secretário-geral do Ministério da Justiça no governo José Sarney e chefiou a pasta interinamente. Integra a Academia Pernambucana de Letras e escreveu uma biografia de Fernando Pessoa.

 

A ideia de revisão da Lei da Anistia provocou polêmicas na comissão desde sua criação, em 2012. No início ela se dividiu em dois grupos, mas no decorrer dos debates passou a prevalecer a tese de que o Brasil deveria seguir tratados internacionais que consideram graves violações de direitos humanos crimes imprescritíveis, que não podem ser anistiados. O advogado José Carlos Dias foi um dos que mudaram de opinião.

 

Para os outros seis integrantes, a condenação das graves violações de direitos humanos não está voltada apenas para o passado: ela visa também os casos atuais. "De certa maneira, esses fatos continuam a ocorrer. Ainda se tortura muito no Brasil porque nunca se condenou a tortura", diz o coordenador do grupo, Pedro Dallari.

 

Unânime. O apoio ao golpe foi quase unânime entre os religiosos em 1964. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que mais tarde se tornaria uma das principais vozes contra a ditadura, estava entre os apoiadores. Outros dois ícones da resistência, posteriormente, os bispos d. Paulo Evaristo Arns e d. Hélder Câmara também apoiaram o início do movimento, como lembrou Padilha.

 

"Menciono isso não para desqualificar, mas para mostrar a grandeza desses dois bispos", explicou. "No momento em que perceberam que haviam caído numa cilada, tomaram consciência de suas responsabilidades e se tornaram dois gigantes na luta contra a ditadura. Vários outros bispos católicos apoiaram o golpe e depois se redimiram. No campo protestante também ocorreram casos assim."

 

O documento do grupo coordenado por Padilha tem quase 200 páginas - mas só uma parte dele faz parte do relatório da Comissão Nacional a ser divulgado na quarta-feira. O material restante deve ser transformado numa publicação para distribuição e debate nas igrejas.