Um valor incontestável do trabalho da Comissão da Verdade, resumido no relatório final entregue semana passada à presidente Dilma Rousseff, está naquilo em que, para os setores mais comprometidos com a consolidação do estado democrático de direito no Brasil, há absoluta unanimidade. A CV rasgou o incômodo véu que procurava manter encobertos episódios obscuros da ditadura militar, inclusive apontando responsabilidades no topo da hierarquia militar e também iluminando os porões, com a identificação de agentes públicos envolvidos em torturas e outros atos condenáveis contra opositores ao regime.

Iluminar essa lacuna na História brasileira tem o mérito de alertar para o perigo das aventuras políticas, à direita ou à esquerda, pautadas pelo autoritarismo. Mas, como já se desenhava no curso dos trabalhos da Comissão, a maioria de seus integrantes deu forma também a um preocupante equívoco, ao defender, no documento final, a revisão da Lei da Anistia. É um despropósito em relação ao qual a unanimidade passa ao largo, mas ainda assim a CV o consignou no relatório. Lamentável.

Esse avanço sobre matéria vencida em todas as instâncias em que foi apreciada, inclusive no Supremo, é perigosa extrapolação. A começar pelo pressuposto que embasou a lei. A anistia foi costurada entre militares e representantes da oposição para pacificar o país, tornando-se a expressão de um projeto que apostou na conciliação, e não no confronto, muito menos na violência ou em radicalismos revanchistas.

A Comissão da Verdade foi constituída em 2012, mais de três décadas depois da promulgação da Lei da Anistia como resultado de ampla negociação. O princípio da conciliação estava implícito no entendimento entre o Alto Comando e a sociedade civil, e explícito nos termos do projeto avalizado pelo Congresso, que aprovou o perdão recíproco. Em seguida, a anistia foi incorporada à Carta de 88 pela Assembleia Constituinte. Por si, foram procedimentos que lhe conferiram extrema força à lei.

Mesmo assim, atacada por grupos radicalizados no propósito de impor a limitação do seu alcance, a Lei da Anistia foi em sua totalidade referendada pelo Supremo Tribunal Federal. De forma oportunista, esses setores ainda tentam puxar para seus argumentos a suposta prevalência de tratados internacionais que condenam crimes como a tortura. Mas, como lembra o ministro do STF Marco Aurélio, eles não se sobrepõem à Constituição do país.

A proposta de uma revisão da anistia, se pudesse ser lavada a sério, para um acerto de contas com o passado, embutiria também a punição, a posteriori, de militantes da esquerda envolvidos no assassinato de agentes públicos. Mas, por conveniência, o que o relatório final da CV propõe é uma aplicação unilateral da lei. Ou seja, pune-se apenas um lado da "guerra suja". De qualquer modo, a presidente Dilma teve uma reação positiva ao receber o documento, quando desoxigenou a ideia de o relatório dar margem a revanchismos. É o que se espera.

 

Olhar para a frente

 

Com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, volta o debate sobre a conveniência de mudança ou reinterpretação da Lei da Anistia, para punir torturadores. Há pessoas de boa fé que sugerem um ponto final no assunto, posição respeitável, mas equivocada. É principalmente a elas que me dirijo. A proposta de anistia aprovada em 1979 não foi fruto de consenso, ao contrário do que se diz. A oposição defendia "anistia ampla, geral e irrestrita", beneficiando todos os atingidos pela ditadura.

O texto aprovado no Congresso — por estreita margem — foi o dos militares. Não contemplou condenados por ações armadas com mortos ou feridos, classificados como "crimes de sangue". Houve presos só libertados depois, com a redução das penas por mudança na Lei de Segurança Nacional.

Não se falava em anistia a torturadores. Era tema fora de pauta. Além disso, eles cometeram "crimes de sangue", o que impediria serem beneficiados por aquela anistia.

A lei beneficiava também autores de "crimes conexos" a crimes políticos. Isso foi usado depois pela ditadura para contemplar, numa autoanistia, agentes da repressão. Ora, crime conexo é, por exemplo, o roubo de um carro para uso na guerrilha. E não estupro, tortura e assassinato de presos, como interpretado pelos militares.

Depois de aprovada a Lei da Anistia, o Brasil firmou tratado internacional — que, aprovado pelo Congresso, somou-se ao arcabouço legal do país — classificando tortura e desaparecimento forçado de opositores como crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não anistiáveis. Assim, mesmo que a interpretação absurda sobre crimes conexos pudesse beneficiar torturadores, a tese de que estavam anistiados cairia por terra.

Mas, deixemos as questões jurídicas. Vamos aos aspectos políticos.

A ninguém interessa enxovalhar as Forças Armadas, instituições vitais para o país. Mas elas têm que se dar ao respeito. Não podem seguir negando que nos quartéis se torturou. Soa como escárnio. É como se houvesse um pacto: ninguém se mete em assuntos dos militares e estes não se imiscuem no dia a dia da sociedade. Na sua formação, os futuros oficiais aprendem que o golpe de 64 foi uma "revolução redentora" e que o regime militar "salvou a democracia".

Isso é inaceitável. As Forças Armadas são parte do Estado democrático e estão submetidas a ele. Devem reconhecer as responsabilidades pela quebra da ordem constitucional em 1964 e pelas violações dos direitos humanos na ditadura. Precisam adequar as escolas militares aos novos tempos e abrir os arquivos da repressão política.

O julgamento dos torturadores é parte desse processo.

Para que uma página da História seja virada, ela deve ser lida. Só assim se criam anticorpos para que tempos sombrios não voltem.

Rever a Lei da Anistia não é revanchismo, nem voltar ao passado.

É olhar para a frente.