Apesar da pressão dos grupos estaduais, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) decidiu não recomendar, explicitamente, a revisão da Lei da Anistia no relatório a ser divulgado na próxima quarta-feira. "Não vamos entrar no mérito para tratar da reinterpretação da lei. Isso é irrelevante", disse o coordenador da CNV, Pedro Dallari. O colegiado concluiu que a atual legislação não impede a punição dos autores de graves violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura. Embora esteja ausente no documento um pedido formal pela mudança da lei, haverá uma lista com nomes de todos aqueles que foram comprovadamente responsáveis por crimes que não prescrevem, tais como a tortura. 

Segundo Dallari, a revisão da Lei da Anistia foi sugerida pela maioria das comissões estaduais. "Nós não fomos insensíveis a esse sentimento que se manifestou de maneira consensual", justificou, acrescentando que o colegiado entendeu não ser necessária a mudança da lei. "Nós apuramos um quadro muito grave de violações de direitos humanos. E, por isso, vamos pedir para que haja a responsabilização civil, criminal e administrativa dos que causaram as violações". Entre os nomes da lista, haverá inclusive presidentes que atuaram no regime militar. 

Assinada em 1979, ainda durante o regime ditatorial, a Lei de Anistia foi uma forma de "reconciliação" da sociedade brasileira, após anos de terror por parte de agentes do Estado e de grupos de oposição radicais, que recorreram às armas para enfrentar os militares. A norma impede a condenação de pessoas a serviço do Estado que cometeram crimes como tortura e desaparecimento, assim como de civis que usaram da violência contra o regime. 

A polêmica em torno da revisão da norma é antiga, e já bateu às portas do Supremo Tribunal Federal, em 2008, por meio de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Para a entidade, os princípios da Constituição de 1988 não permitiriam o acolhimento da Lei de Anistia. Em abril de 2010, por sete votos a dois, os ministros da Corte rejeitaram o pedido. O STF deve voltar a se debruçar sobre o tema ao julgar recurso da própria OAB e uma nova ação, de maio de 2014, apresentada pelo PSol. 

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, já emitiu parecer favorável ao pleito do partido. No documento, ele ressalta que seis ações penais contra agentes da ditadura já foram arquivadas pela Justiça com base na anistia. "Não é possível conceder anistia para crimes de desaparecimento forçado, execuções sumárias e tortura", diz Janot, uma vez que tais crimes são "imprescritíveis". A nova apreciação da matéria pelo STF ainda não tem previsão para ocorrer. Chile, Uruguai, Argentina e Guatemala são alguns dos países que passaram por ditaduras ao longo do século XX e, de volta a regimes democráticos, revogaram leis de anistia semelhantes à brasileira. 

A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo já marcou para segunda-feira uma audiência em que contestará a decisão da CNV de não tratar da Lei da Anistia. Presidente do grupo, o deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP) argumentou que era necessário falar do tema, mesmo sem pedir a revogação da lei. "A publicação desse relatório pode significar um tremendo avanço, mas também um tamanho retrocesso. De repente, o documento vai dar um ponto final no assunto e aí a discussão sobre os danos do regime militar é página virada", lamentou. 

Relator do documento, Dallari disse que outras sugestões das comissões estaduais serão contempladas. Uma delas é a recomendação da mudança de nomes de logradouros que atualmente homenageiam acusados de atuar e permitir violações de direitos humanos. A Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília sugeriu a alteração, por exemplo, da Ponte Costa e Silva, em Brasília. Dallari explica que o relatório não tem o objetivo de nominar os locais que hoje existem no Brasil com essas referências. "A nossa recomendação é para evitar esse tipo de simbolismo. Mas isso deve ser discutido com a população. Os donos das ruas são as pessoas". 

Uma recomendação consensual entre as comissões era pela abertura dos acervos das Forças Armadas e do Ministério das Relações Exteriores. Dallari confirmou que o pedido estará na lista, que contará ao menos com 25 solicitações. Também haverá uma requisição para incluir no currículo oficial de ensino a obrigatoriedade da temática da ditadura militar no Brasil e as violações dos direitos humanos. 

No relatório com cerca de duas mil páginas, haverá um capítulo dedicado aos perfis de mortos e desaparecidos durante o regime militar. Serão 434 nomes, 72 a mais do que a lista oficial do governo, divulgada pela Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. O documento da CNV levará em conta uma relação produzida pelos próprios familiares e divulgada no Dossiê Ditadura. 

Memória e justiça 

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em 16 de maio de 2012 com a missão de identificar graves violações de direitos humanos - como torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultações de cadáveres, assim como os autores de tais crimes - ocorridas entre 1946 e 1988. A CNV também deve identificar os locais, estruturas, instituições e circunstâncias em que se deram as violações. Prevista para encerrar os trabalhos em dezembro de 2013, o mandato do colegiado foi prorrogado até dezembro deste ano. 

434 

Quantidade de nomes que constarão do relatório final da CNV, 72 a mais do que a lista oficial do governo