Título: Anseios femininos
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 16/05/2011, Mundo, p. 12

Enviada especial

Teerã ¿ Kimia* não tinha nascido quando decidiram que ela teria de usar um véu por toda a vida. Hoje, com 15 anos, tem um sonho que, na essência, é o mesmo dos jovens de sua idade em todo o mundo, mas, na prática, vai muito além do desejo de contestação típico dos adolescentes. Kimia quer ¿ser livre¿, desabafa. E, para ela, isso significa, em primeiro lugar, não precisar cobrir os cabelos para sair de casa. Depois virão outros planos, como o de estudar genética no Canadá. Mas enquanto tudo isso ainda é muito distante, a jovem estudante de Teerã obedece às regras em público: veste o maqnae ¿ lenço preto obrigatório nas escolas e nos escritórios ¿ e continua a sonhar.

Mahdiyeh Samshidi também não tinha nascido quando os aiatolás chegaram ao poder e o véu se tornou obrigatório, mas ela diz não se importar. Mais do que isso, a professora universitária de 29 anos gosta e faz questão de cobrir não apenas o cabelo, mas todo o corpo com o tradicional chador preto, mesmo a peça não sendo obrigatória. ¿O hijab é uma proteção, que faz com que a nossa beleza seja vista apenas por nossos maridos¿, explica a moradora de Yazd. Para ela, o chador não atrapalha a mulher na sua vida social e muito menos no seu trabalho. ¿Podemos desempenhar qualquer função e estamos cada vez mais presentes no mercado de trabalho¿, assegura.

Kimia e Mahdiyeh estão nos extremos de uma sociedade em que o papel da mulher ainda parece ser moldado. Enquanto no Ocidente a possibilidade de a iraniana Sakineh Mohammadie Ashtiani ser apedrejada até a morte sob a acusação de adultério e de planejar a morte do marido escandaliza a população e governantes, em Teerã, a tentativa é de mostrar que a mulher é valorizada e tem um importante espaço na sociedade. Segundo o governo, 60% dos estudantes universitários do país são mulheres, o que representa um crescimento de 25% da presença feminina na academia desde a Revolução Islâmica, em 1979. No mercado de trabalho, o aumento do número de mulheres entre 1976 e 2006 foi de 33% no setor de serviços e de 140% no de empregos técnicos e especializados.

¿Antes da revolução, só quem tinha espaço no governo eram as mulheres de políticos, ministros. Hoje, todas têm essa oportunidade, o que foi uma grande conquista¿, defende a secretária da Presidência para os Direitos da Mulher e da Família, Maryam Mojtahedzade. Ela destaca que, atualmente, há quatro mulheres no parlamento iraniano, assim como ministras e secretárias que, como ela, têm o status de um ministro. ¿Mas o Ocidente não quer ver essas coisas. Eles só querem falar sobre o caso dessa senhora (Sakineh Ashtiani), que já tem cinco anos e ainda não foi concluído¿, reclama a secretária, que, inclusive, afirma ser uma ¿invenção¿ da mídia ocidental a condenação à morte por apedrejamento. ¿Em vez de os outros países defenderem o fato de termos leis ¿ e ela está sendo julgada por assassinar o próprio marido ¿, eles usam isso para nos atacar.¿

Avanço no recuo Longe da discussão sobre o destino de Sakineh, que não é vista nos jornais ou nas televisões iranianas, estão as jovens que contestam o regime de forma bastante sutil: recuando cada vez mais o véu. Enquanto as senhoras optam pelo chador preto, fechado, que deixa à mostra apenas o rosto, a grande maioria das garotas circula por Teerã com lenços coloridos calculadamente desarrumados para mostrar mais os cabelos, o rosto e o pescoço. Como a geógrafa Negan, 22 anos, que, quando não precisa usar o maqnae, deixa o lenço solto o bastante para mostrar o moderno corte de cabelo. E não poupa na maquiagem com os olhos bem marcados, como a maioria das jovens de sua idade. ¿Sou como qualquer outra mulher de qualquer lugar do mundo, que pode pintar as unhas da cor que quiser, usar jeans e maquiagem. A única diferença é o véu¿, resume.

Também Maheen, 19 anos, moradora de Shiraz, não se deixa limitar pelas regras que considera ¿injustas¿. ¿O governo obriga as mulheres a usar o hijab, mas nós usamos roupas bonitas, coloridas e justas ao corpo. Não cobrimos completamente o cabelo. E você vê várias mulheres bonitas aqui¿, observa a estudante de tecnologia da informação, com a cabeça coberta por um belo lenço amarelo. Ela acredita, inclusive, que avanços foram conseguidos na última década. ¿Hoje em dia, as mulheres são bem mais livres do que antes. A maioria tem um emprego, seu próprio dinheiro, não depende de seus maridos ou pais e é mais ativa na sociedade.¿

Para algumas, no entanto, as mulheres no Irã estão muitos passos atrás de seus homens. ¿Para tudo que fazemos, é preciso superar sempre uma barreira a mais do que os homens¿, diz a moradora de Teerã Saman, 31 anos. Ela, que pratica esportes com o marido ¿ sempre com os cabelos cobertos ¿ lamenta a obrigatoriedade e a falta de qualquer perspectiva de discussão sobre o tema. ¿O véu não só nos atrapalha fisicamente como representa a distância que resolveram estabelecer entre eles (os homens) e nós há 30 anos.¿

» A repórter viajou a convite da Organização de Herança Cultural, Artesanato e Turismo do Irã (órgão do governo)

* Alguns nomes foram modificados a pedido das entrevistadas.

Dez dias sob o véu Primeiro, foi a novidade. Tirar o lenço da bolsa ainda no avião para cobrir os cabelos foi, no começo, interessante. O véu traz uma nova moldura ao rosto que nós, ocidentais, não estamos acostumados a ver. Aos poucos, no entanto, a novidade começou a se tornar um incômodo, especialmente nos dias quentes em meio ao deserto. E especialmente porque também é obrigatório que as mulheres deixem à mostra apenas suas mãos e seu rosto. Mas o calor sob o lenço, a calça e a bata de mangas compridas não incomodou tanto quanto a percepção de que, a despeito do que o governo possa argumentar com números, as mulheres sob os véus não têm as mesmas oportunidades no Irã. Ao menos, não de escolha.

Lembrei-me de Marjane Satrapi e seu quadrinho Persépolis, no qual relatou, entre tantos outros temas, a estranheza com que ela e suas amigas, ainda crianças, receberam o estabelecimento da obrigatoriedade do véu, há pouco mais de 30 anos. É uma questão que vai além da roupa e além da religião ¿ que nem mesmo é professada por todas as que têm de usar o véu. Mesmo com o corpo todo coberto, a mulher ¿ e seu comportamento ¿ é observada, exaustivamente, por homens, e até por outras mulheres, num ciclo vicioso de censura pelo olhar.

Estava no Irã no dia em que a França aprovou a lei que proíbe o uso do véu no país. A decisão é tão invasiva quanto obrigar as mulheres a usá-lo, da noite para o dia. Se tivesse a opção, Kimia certamente não usaria o hijab e talvez nem tivesse o sonho de deixar o país. Já Mahdiyeh continuaria a usar com prazer o chador. Mas, hoje, tal diversidade não é possível para as mulheres de Teerã, Yazd ou Shiraz. Nem para as de Paris. (IF)