Título: A aquisição de terras por estrangeiros no país
Autor: Oliveira , Márcio Mattos
Fonte: Valor Econômico, 28/07/2008, Legislação & Tributos, p. E3

Não restam dúvidas de que a discussão em torno da internacionalização das terras no Brasil é uma questão imperativa na agenda nacional. No entanto, como tudo o que envolve a presença de estrangeiros no país, de alguma forma costuma trazer consigo o peso do ufanismo, herdado da era Vargas, dos movimentos sindicais, e do regime militar das décadas de 60 a 80.

O romantismo em torno do tema muitas vezes não nos permite racionalizar de forma pragmática, o que pode se tornar um perigoso aliado na definição do conceito de segurança nacional e da sua conseqüente tutela. O assunto já vem tomando corpo, mas os debates parecem estar sendo prejudicados por conclusões sem embasamento, já que não levam em conta os dados já apresentados pelos órgãos oficiais, como a localização e a área de atuação desses empreendimentos.

A questão precisa ser analisada em conjunto com outros fatores igualmente importantes, como a degradação ambiental desenfreada das áreas rurais, a falta de registro de terras na maior parte do país, as divisas trazidas pela atuação dos estrangeiros na área rural e, finalmente, até onde essa presença alienígena pode comprometer a segurança nacional.

De acordo com os resultados mais recentes apresentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o número de imóveis comprados por estrangeiros no último ano aumentou nas regiões Centro-Oeste, Sudeste, Nordeste e Sul e teve uma redução na região Norte. Além disso, dentre as atividades exercidas por estrangeiros estão principalmente a produção de biocombustíveis (etanol) e commodities, geralmente distante da região amazônica, região estratégica do ponto de vista científico e militar.

De acordo com a nossa legislação, a Lei nº 5.709, de 1971, que regula a compra de imóveis rurais por estrangeiros, estabelece que nenhuma pessoa física ou jurídica estrangeira pode ter mais de 50 glebas de terra em área rural, o que, dependendo da região, pode representar até o equivalente a cinco mil hectares. Além disso, a mesma lei estipula que as propriedades em mãos de estrangeiros não podem ultrapassar um quarto dos municípios onde se situem. Outras formas de ocupação por estrangeiros ainda precisam ser reguladas, como o arrendamento ou aluguel, institutos não abrangidos pela legislação, mas que já é tratado em um projeto de lei aprovado em algumas instâncias do Congresso Nacional. Com relação à segurança nacional, o artigo 7º da Lei nº 5.709 vincula a aquisição dessas áreas por estrangeiros ao assentimento prévio pela Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional.

O que não pode ocorrer é que tornemos inviável a aquisição de terras por estrangeiros em situações que não firam a segurança nacional, pois tal ato seria de inconstitucionalidade flagrante, tendo em vista a consagração, em cláusula pétrea, do princípio de igualdade entre brasileiros e estrangeiros em nossa Carta Magna. Se as autoridades fiscalizarem essas regiões corretamente não haveria qualquer ameaça com a ocupação de estrangeiros na área rural. Pensar diferente disso seria voltarmos à época em que qualquer investimento estrangeiro no setor produtivo do país era visto como um ataque à nossa soberania, o que mais tarde pudemos verificar ter sido um dos grandes motivos do atraso ao nosso desenvolvimento.

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Existem áreas de até um milhão de hectares nas mãos de proprietários rurais - na maioria brasileiros - que se escondem atrás do anonimato da falta de registro público, e cuja consciência ambiental e social, na maioria das vezes, é nada mais do que uma nota de rodapé. Os números da ocupação de terras brasileiras por estrangeiros nos trazem uma constatação clara: esses investimentos costumam ser sustentavelmente mais benéficos do que as ocupações desenfreadas nas regiões ameaçadas dos nossos principais biomas. Apesar dessas constatações provavelmente causarem arrepios a alguns movimentos de plantão, a presença dos estrangeiros, dentro dos limites legais já existentes, não representa menos ameaça do que a ocupação de áreas na Amazônia Legal por brasileiros sem registro para a atividade pecuária.

Não que não existam estrangeiros que investem em terras irregulares, mas aqueles que realmente têm interesse em investir no país não costumam adotar essa prática. Parece-nos que se está lançando uma cortina de fumaça em torno do fato incontestável de que a grande maioria dos projetos dos investidores estrangeiros costuma ser direcionada a atividades ambientalmente mais sustentáveis do que a maioria da produção de grandes proprietários brasileiros, principalmente na região Norte, que até teve um decréscimo em ocupações desse tipo. Esse fato provavelmente se deve à pressão exercida pelos mercados consumidores daqueles países, que geralmente não vêem com bons olhos os produtos originários do bioma Amazônia.

Se conseguirmos nos distanciar da irresistível sedução que exerce essa dialética da presença de estrangeiros em terras nacionais, concluiremos que o problema é menos a aquisição de terras por estrangeiros do que o anonimato de proprietários rurais que devastam essas regiões com práticas como a utilização de trator-corrente para extração de madeira ou as queimadas, tão comuns no Brasil - o que, mais uma vez, pode garantir por mais tempo a impunidade aos que realmente são responsáveis por essas práticas.

Se todas essas leis fossem cumpridas, a entrada de estrangeiros não seria uma ameaça, podendo, inclusive, ser a solução para a mudança de consciência dos povos da região, já que a grande maioria dos projetos desses investidores costuma ser mais sustentável do que a do processo produtivo utilizado pelos grandes proprietários brasileiros. Isso é um fato inquestionável que ocorre pela própria pressão dos consumidores daqueles países que exigem e cobram dos fabricantes produtos mais sustentáveis. Um consumidor francês ou alemão, por exemplo, se recusa a comprar móveis cuja madeira retirada para a sua fabricação não possua certificação comprovando a sua origem. Essas são atitudes inibidoras para os investidores estrangeiros, que não querem ter seu nome vinculado a atividades ambientalmente reprováveis nos seus países.

Não podemos cair na armadilha da retórica maniqueísta do bem e do mal, a qual poderia contribuir sobremaneira para um desequilíbrio ambiental no campo, quando nos distanciamos do que realmente interessa para irmos de encontro a dragões quixoteanos produzidos por mentes tomadas por paixões incontroláveis, em uma estória que só se repete.

Márcio Mattos de Oliveira é advogado especializado em direito ambiental, energia e agronegócio do escritório Pompeu, Longo, Kignel & Cipullo Advogados

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