Título: Cidade de São Paulo tenta criar espaço de utopia urbana
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 09/06/2008, Especial, p. A12

Quantas vezes por dia é preciso varrer ruas e praças do centro de São Paulo? Duas vezes, como acontece agora? Ou quatro vezes, como seria de se exigir para que a região permanecesse realmente limpa? E quanto custa duplicar o serviço e acertar os horários de varrição? São estes os detalhes que faltam para que prefeitura, Estado e iniciativa privada anunciem oficialmente a Aliança pelo Centro Histórico, pacto para a implantação de um programa de qualidade total e tolerância zero em 35 pequenas ruas e praças do centro da cidade.

Exatamente onde São Paulo nasceu há 454 anos, num triângulo de apenas meio quilômetro quadrado, delimitado hoje pelo Largo de São Bento, a Praça da Sé e o Largo de São Francisco, com o Pátio do Colégio no meio, se tentará criar um espaço de utopia urbana. Segundo os planos, nesse pedaço de São Paulo, ainda nestes dias de junho/julho, antes das eleições municipais, não mais haverá lixo acumulado nas esquinas, funcionarão todas as lâmpadas da iluminação pública, o piso de pedras portuguesas das vias de pedestres - 85% da área - não terá falhas, nem o asfalto, buracos, crianças não dormirão debaixo das marquisas e os mendigos serão recolhidos a um albergue, longe do triângulo.

Aos poucos, o meio das ruas de pedestres deixará de ser ocupado pelas banquinhas de barulhentos camelôs e pelos silenciosos homens-sanduíche, tristes personagens que anunciam a compra de um ouro que aparentemente ninguém vende. Onde já são raros os crimes violentos, não haverá pequenos furtos, pois com permanente vigilância será eliminado aquilo que o coronel PM Álvaro Camilo, 47 anos, comandante do Policiamento da Área Centro, chama de "desordem social" (desocupados, população de rua, mendigos) e que, aliada à "desordem física" (prédios abandonados, terrenos baldios, ambientes degradados), são causas da violência.

Com ruas, enfim, limpas e tranqüilas, as cerca de 1,2 milhão de pessoas que ali trabalham ou por ali transitam diariamente poderão fazê-lo sem outra preocupação, talvez, do que com a superlotação dos trens nas estações de metrô (Anhangabaú, Sé, São Bento) ou dos ônibus nos terminais da vizinhança (Pedro Lessa, Praça da Bandeira e Parque Dom Pedro). Freqüentadores do bar Salve Jorge, na minúscula rua Antônio Prado, não mais se preocuparão com trombadinhas e pedintes, e poderão concentrar-se na volatilidade dos negócios da instituição em frente, BM&F Bovespa, a mais rica do pedaço em valor de mercado (R$ 30 bilhões). Ali perto, na esquina da Rua do Tesouro com Boa Vista, funcionários da presidência de outra instituição muito rica, o estadual Banco Nossa Caixa (R$ 3 bilhões), estarão focados em como será a vida com um novo patrão, provavelmente o Banco do Brasil.

Como a preparar-se para o futuro, empresas comerciais e de serviços da região reciclaram seus imóveis nos últimos anos, quando a melhora em geral da economia fez aparecerem os consumidores e a prefeitura começou a interessar-se pela criação de um ambiente de negócios no centro da cidade. Algumas delas, grandemente geradoras de empregos como a Atento, call center ligado à Telefônica, mudaram-se para o triângulo. Para lá também foram quatro campi da Uniesp, e uma quinta extensão universitária virá de Guarulhos para se instalar - é a nova moda - nos andares superiores do Shopping Center Light do outro lado do Anhangabaú, fronteira do triângulo. "Faculdades são importantes porque asseguram movimento à noite", diz Marco Antônio Ramos de Almeida, superintendente da Associação Viva o Centro, de onde partiu a maioria das coisas boas que aconteceram na região central de São Paulo nestas duas décadas.

A ausência de garagens e estacionamentos subterrâneos é, porém, um problema. A Santa Casa de São Paulo, por exemplo, tem oito prédios na área para locação. Um deles, de 12 andares, o Ouro para o Bem de São Paulo, na Álvares Penteado, foi inaugurado em 1932, durante a revolução constitucionalista. Por falta de garagens, um conjunto de 90 metros quadrados, aluguel de R$ 1.080 mensais e condomínio de R$ 800, continua vazio. A procura crescente de outras salas e conjuntos, entretanto, tornou sem efeito a promoção que permanece anunciada na portaria do edifício: "Pague aluguel somente a partir do quarto mês".

Na gestão de Marta Suplicy (PT), a própria prefeitura abriu o caminho da revitalização, transferindo-se para o Viaduto do Chá, à entrada do triângulo. E a gestão atual, de Gilberto Kassab (DEM), à frente o secretário das Subprefeituras, Angelo Andrea Matarazzo, transformou o centro histórico em uma das amostras de sua administração. Matarazzo contesta que se pretenda criar no centro de São Paulo, uma região "higienizada", discriminatória. "Queremos fazer do centro um lugar onde todos se sintam bem, trabalhem, passeiem, façam turismo tranqüilamente. Sim, será uma região limpa. Mas isso não é ser contra pobre, porque pobre também gosta de limpeza. Tínhamos 3 mil moradores de rua em São Paulo. Hoje são entre 300 e 450. Sem truculência, mas com persistência, nossa equipe vai lá, conversa. Eles acabam concordando em ir para um albergue e muitos até voltam para a família. A maioria da população de rua tem problemas mentais ou de drogas. Precisa ser tratada", diz Matarazzo. "Veja: também não há mais criança carente pelo centro, nem aqui nem na praça da Sé", acrescenta o sobrinho-neto do famoso conde Francesco (Castellabata, Itália, 1854-São Paulo, 1937), em frente à Galeria Prestes Maia.

Às costas do secretário, na multidão de pedestres, ao meio dia de uma quinta-feira, as duas únicas crianças no campo de visão estão acompanhadas dos pais. Vieram de Bauru, saíram do Hotel Othon, na Líbero Badaró, apreciaram a estátua de José Bonifácio de Andrada e Silva e agora vão na direção da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde o pai se formou.

Ramos de Almeida, 62 anos, aposentado depois de trabalhar 30 anos na antiga sede do Banco de Boston na Líbero Badaró, diz que a região escolhida é emblemática porque é a que representa a São Paulo das primeiras décadas do século 19.

Em seus arredores, naquela época, começava o interior (Há um quadro de 1826 do inglês Charles Landseer, com a perspectiva a partir da rua do Paredão do Piques, hoje Xavier de Toledo, em que aparecem destacadas contra o horizonte as torres do Colégio, do Rosário, da Sé, do Carmo e de São Francisco. O triângulo histórico de hoje ocupa exatamente o espaço retratado pelo lápis de Landseer). "Este é um projeto piloto. Depois, pode e deve expandir-se para outras áreas", diz Ramos de Almeida.

Para a execução desse plano a prefeitura entrará com a maior parte do trabalho - policiamento comunitário, repressão ao comércio irregular, limpeza, iluminação, conserto de calçadas, assistência social. A Polícia Militar patrulhará as ruas, com carros, bicicletas, a pé, e até uma novidade - as "seg way", veículo de duas rodas ligadas por um eixo sobre o qual se equilibra o vigilante. Ideal para uso em curtas distâncias e velocidade de 20 quilômetros por hora, o engenho ainda não ganhou apelido mas já é visto em alguns estacionamentos de shopping centers.

A PM combaterá o contrabando, a pirataria, a carga roubada, o tráfico de entorpecentes. "Haverá integração com a prefeitura e outros órgãos do Estado", diz o coronel Álvaro Camilo. "A intenção não é reprimir. Queremos que as pessoas se sintam bem, em paz e segurança. Se tivermos de prender um cidadão que está vendendo produto pirata, vamos explicar para o pessoal que se junta ao redor: pirataria é crime que, além de tudo, tira o emprego de milhares de pessoas". Perguntado se a operação no centro histórico está baseada na tolerância zero do ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani. o coronel Camilo se esquiva. "Gosto de dois estudiosos da violência nos Estados Unidos, George Kelling e William Bratton, com sua teoria das 'broken windows' (janelas quebradas): conserte-as ao primeiro vidro rompido, se não, em pouco tempo, não haverá vidraça inteira no quarteirão".

À teoria das janelas quebradas, o engenheiro Amaury Pastorello, subprefeito da Sé, região administrativa a que pertence o triângulo histórico, acrescenta a responsabilidade do administrador. "O importante", diz, "é cada um fazer a sua parte. Se fizer com qualidade total, dará certo". Sobre os ambulantes que ainda infestam o centro, Pastorello diz que "é preciso tirar e não deixar voltar". Ele exemplifica com o que aconteceu no bairro de Pirituba, na zona noroeste, onde foi subprefeito no início da gestão José Serra (PSDB) na prefeitura. "Aos sábados, havia uma feira de produtos de procedência duvidosa. Entregamos aos feirantes um panfleto: hoje é o último dia. No sábado seguinte, quando eles chegaram, a PM já ocupava toda a área. A feira acabou".

A Aliança se completa com a participação da iniciativa privada, representada pela Associação Viva o Centro, criada há 18 anos por inspiração do então banqueiro Henrique Meirelles e que continua na presidência da ONG, acumulando-a com a do Banco Central. A Viva o Centro, instalará, às suas custas e em imóvel cedido pela Prefeitura, uma central (zeladoria) para acompanhar durante 24 horas tudo que acontece na área. Esta será dividida em cinco microáreas- São Francisco, Líbero Badaró/S.Bento, Boa Vista/Pátio do Colégio, 15 de Novembro/Álvaro Penteado e Sé. Os "zeladores" circularão permanentemente em cada subárea e se reportarão à central. A Viva o Centro já tem planejadas 19 ações locais a serem desenvolvidas nas subáreas e elas começarão a ser executadas 15 dias após o lançamento oficial da Aliança. O intervalo é para que os empresários da região tomem conhecimento da novidade e se preparem para colaborar com ela. "Precisamos, por exemplo, combinar os horários de colocar o lixo para a coleta. A intenção é que isso ocorra 'just in time', para que os sacos não fiquem abandonados na esquina e o mau cheiro não se espalhe. Tudo tem que funcionar num padrão de rigorosa qualidade", diz Ramos de Almeida.