Título: A defesa da concorrência e a tributação
Autor: Rebouças , Helder
Fonte: Valor Econômico, 07/04/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Em que pesem os obstáculos de natureza político-federativas, refletidos na resistência da União, Estados e municípios em abrir mão de receitas públicas e de autonomia - o que acaba adiando uma efetiva reforma tributária -, não há como negar a urgência na correção de rumos e de aperfeiçoamento de institutos do nosso sistema tributário. O que temos hoje é um estoque significativo de leis e regulamentos - um "cipoal tributário" - que contribuem ainda mais para ampliar a insegurança jurídica e ofertar um maior grau de liberdade aos sonegadores. Como o assunto volta à cena política, a partir da remessa de um novo projeto de reforma tributária do governo federal, abrem-se oportunidades para discussões de pontos já contidos na própria Constituição Federal, como a fixação de critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios da concorrência, conforme prevê o artigo 146-A da Carta.

A teoria da tributação classicamente tem se embasado nos princípios da neutralidade e da eqüidade. A idéia geral da neutralidade é a de que eventuais alterações na tributação não tragam distorções no sistema de preços relativos, o que implicaria menor eficiência nas decisões econômicas e, portanto, redução do nível de bem-estar. Já no campo da eqüidade, espera-se que o sistema tributário reparta o ônus de forma justa entre os agentes econômicos, observando a utilização que cada um faz dos bens e serviços públicos e capacidade contributiva individual.

Estes princípios, em suma, perseguem o que se chama de solução eficiente de mercado, em que a melhora de algum agente econômico não pode se dar às custas do prejuízo de outros. A própria lei antitruste - a Lei nº 8.884, de 1994 -, em algumas passagens, se refere explicitamente ao critério de eficiência. Assim, a conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico não caracteriza ilícito, conforme o artigo 20, parágrafo 1º da lei, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) poderá autorizar os atos, manifestados sob qualquer forma, que possam limitar ou, de qualquer forma, prejudicar a livre concorrência ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, desde que propiciem a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico, como estabelece o artigo 54, parágrafo 1º, alínea "c" da legislação.

De fato, a política tributária, se não harmonizada com outros objetivos da política econômica, pode acarretar desequilíbrios concorrenciais, como nos casos da guerra fiscal, da sobrecarga tributária setorial e da informalidade. Além disso, a trivial relação entre tributos, custos e preços finais indicam a importância do sistema tributário nacional como vetor de defesa da concorrência. A Lei nº 8.884, em seu artigo 21, toma os custos (que incluem os tributos) como elemento fundamental no modelo de verificação de infrações à ordem econômica. A relação entre tributação e concorrência também é revelada naquele diploma legal, quando ele prevê que o Cade, além das penas por infrações econômicas, poderá determinar que não seja concedido ao infrator parcelamento de tributos federais por ele devidos ou que sejam cancelados, no todo ou em parte, incentivos fiscais ou subsídios públicos. O Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento recente de 2007, considerou lesiva à concorrência a pretensão da indústria de cigarros de, isoladamente, deixar de recolher o IPI.

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Além da questão dos custos tributários, é certo que uma estrutura tributária racional, para o bem do sistema de concorrência, deve ser transparente, sem o que, novamente, a tomada de decisão pode levar a soluções ineficientes. Tal transparência demanda um sistema normativo simplificado, o que justificaria a imediata consolidação das leis tributárias e dos regulamentos, como bem determina o Código Tributário Nacional (CTN), em seu artigo 212, aos poderes Executivos federal, estadual e municipal.

No contexto concorrencial, a reforma tributária não poderá, ademais, descuidar-se da sonegação. Algumas estimativas do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial indicam, por exemplo, que um dos setores que mais sofre com a pirataria é o de tecnologia e que apenas 40% do mercado de software no Brasil seria legal. Isso representaria perdas de US$ 1,2 bilhão por ano ao país. Ainda segundo o instituto, a sonegação decorrente da adulteração de combustíveis ocasiona perdas anuais de até R$ 2,6 bilhões ao ano. Estamos diante, pois, de prejuízos à ordem econômica e à arrecadação.

Realçando o debate tributário e fiscal, já em 1999 - portanto apenas cinco anos após a implementação da lei antitruste no Brasil -, o Cade, em resposta à consulta formulada pelo Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE) sobre a nocividade ou não à livre concorrência da prática da chamada guerra fiscal, no caso de incentivos fiscais ou financeiro-fiscais sobre o ICMS pelos Estados brasileiros, prestou esclarecimentos, entre os quais destacamos: 1) incentivos concedidos no âmbito da guerra fiscal podem, portanto, alterar a dinâmica econômica e o nível de bem-estar da coletividade, ao gerar os seguintes efeitos: protege as empresas ineficientes e desestimulando melhorias na produção ou inovação; possibilita que empresas incentivadas, ainda que auferindo lucros, possam predatoriamente eliminar do mercado suas concorrentes não favorecidas, mesmo que sejam mais eficientes e inovadoras, em função da enorme vantagem de que dispõem; 2) dada a patente relação do tema com a defesa da concorrência, o Cade permanece passível de engajamento no debate, dentro, evidentemente, da sua esfera e competência legal.

Por tudo isto, a reforma tributária se apresenta como um campo fértil para que sejam dadas ao Cade e ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência atribuições mais específicas no exame de aspectos da tributação, nas hipóteses de violação do princípio constitucional da livre concorrência, o que representaria, sem dúvidas, um avanço institucional significativo para o país.

Helder Rebouças é consultor e diretor da secretaria de coordenação técnica e relações institucionais do Senado Federal

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