Título: Setor público é fonte de risco
Autor: Gustavo Loyola
Fonte: Valor Econômico, 21/01/2005, Opinião, p. A9

As atuais dificuldades enfrentadas pela prefeitura do município de São Paulo devem servir de alerta para todos que já imaginavam desaparecidos, no Brasil, os riscos de retrocesso na área fiscal. Não há dúvida que os avanços dos últimos anos foram gigantescos no campo das finanças públicas. Porém, há ainda um longo caminho a percorrer, com vistas a assegurar a vitória definitiva, entre nós, do princípio da responsabilidade fiscal. O imbróglio que envolve a prefeitura paulistana explicita claramente os riscos a que a sociedade civil se expõe face ao poder público em nosso país. Prestadores de serviços, fornecedores e credores em geral deixaram de receber valores que lhe são contratualmente devidos, tendo em vista a incapacidade de pagamento do município. Os prejuízos econômicos são incalculáveis. No curto prazo, a conta recai sobre os credores, que devem suportar as dificuldades trazidas pelo inesperado "furo" em seus fluxos de caixa. No médio e longo prazos, contudo, a conta certamente recai sobre os contribuintes em geral, posto que inevitavelmente será exigido do setor público, em seus contratos com fornecedores e prestadores de serviço, o pagamento implícito de um prêmio, tendo em vista o elevado risco de inadimplência em suas obrigações contratuais. Olhando para o passado, é fácil perceber que as três esferas de governo estão hoje sujeitas a uma disciplina fiscal inédita em nossa história recente. Essa disciplina tornou-se particularmente estrita no campo do endividamento público, após o saneamento das instituições financeiras públicas, com a privatização da maioria dos bancos estaduais, a consolidação e retirada do mercado da dívida mobiliária de Estados e municípios, a imposição, pelo Senado Federal, de critérios mais rígidos para a expansão do endividamento interno e externo das unidades da Federação, entre outras medidas de peso. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em especial, introduziu em nosso ordenamento legal dispositivos que objetivaram evitar o endividamento não autorizado, anteriormente prática freqüente em nosso país, principalmente no último ano de mandato dos administradores públicos eleitos. Não obstante tais avanços, o endividamento não-autorizado, infelizmente, ainda é uma realidade. Vale ressaltar que, do ponto de vista puramente econômico, não há distinção a fazer entre uma dívida decorrente do atraso no pagamento de um fornecedor e uma dívida que resulta de um contrato de empréstimo ou da emissão de um título de crédito. Ambas são obrigações financeiras que oneram o balanço do ente público. Apenas que o atraso nos pagamentos é uma forma de endividamento não-autorizado, uma maneira pouco transparente de se burlar os limites estabelecidos em lei e pelo Senado Federal. Uma outra fonte de endividamento público que tem atentado contra os princípios da responsabilidade fiscal são os crônicos atrasos no pagamento de precatórios por parte de alguns Estados e municípios. Tem-se, no caso, um bom exemplo de como o círculo vicioso, iniciado com o não-cumprimento das obrigações contratuais pelo setor público, acaba conduzindo à deterioração futura ainda maior das próprias finanças públicas. Aliás, o princípio da transparência que a LRF quis trazer para as contas dos governos ainda não chegou à dívida resultante de precatórios, cujo montante não é divulgado com as informações rotineiras sobre o endividamento do setor público.

O imbróglio que envolve a prefeitura paulistana claramente explicita os riscos a que a sociedade civil se expõe face ao poder público no país

Tanto os tardios pagamentos de fornecedores de bens e serviços, como os atrasos na liquidação de dívidas oriundas de decisões judiciais, decorrem fundamentalmente de falhas do processo orçamentário brasileiro. Aqui, o orçamento é meramente indicativo - peça de ficção, para alguns - que pouca informação dá sobre os gastos reais que ocorrerão durante determinado exercício. Nesse contexto, obrigações são assumidas pelos governos sem que haja garantia alguma da existência de recursos financeiros "reservados" para a sua liquidação. O caso típico são as desapropriações, fonte expressiva de dívidas judiciais. Normalmente, são feitas apressadamente pelo poder público, sem qualquer preocupação quanto à exeqüibilidade do pagamento de indenizações num prazo razoável. Fossem as desapropriações pagas tempestivamente e em dinheiro, não apenas seu custo seria menor, como também se evitaria sobrecarregar o Judiciário com infindáveis discussões. Mas, não sendo assim, tornam-se, muitas vezes, origem de precatórios de elevado valor, com os quais as administrações futuras não se sentem comprometidas em liquidar. Não há dúvida que é necessário se encontrar uma solução viável para o estoque de dívidas judiciais do setor público acumulado nos últimos anos. Mas, de maneira simultânea, é preciso fechar o criadouro de precatórios representado pelas atuais práticas orçamentárias equivocadas. A obra iniciada pela LRF precisa ser completada pela adoção do princípio do orçamento mandatório, reduzindo as chances de atraso do pagamento de fornecedores do setor público, assim como de abertura de contestações judiciais que, futuramente, se transformam em endividamento adicional. Algumas medidas da reforma judicial ora sob apreciação do Congresso também podem contribuir para reduzir o ritmo de criação de dívida pública pela via judicial, em decorrência da obtenção de maior celeridade e previsibilidade nas sentenças judiciais. Em suma, o cumprimento tempestivo de obrigações contratuais por parte do setor público no Brasil ainda é percebido pela sociedade como algo incerto. Prova disso foi a necessidade de incluir na lei das PPPs um mecanismo específico para garantir que os governos cumpram sua parte nas parcerias público-privadas, penduricalho absolutamente desnecessário em países nos quais as obrigações do Estado são percebidas como livres de qualquer risco de não-cumprimento. Enquanto perdurar essa situação, o setor público continuará sendo sério entrave ao crescimento econômico brasileiro.