Título: Os caminhos do cinema digital no Brasil
Autor: Bispo, Tainã
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2007, Empresas, p. B6

A indústria de cinema passa por um momento de transição. A troca do projetor em película 35 mm para a exibição digital é considerada pelos profissionais do setor algo tão importante quanto a inserção do som e da cor nos filmes no início do século XX.

Com o advento da televisão digital e da melhor qualidade proporcionada pelos aparelhos de alta definição, a indústria da sétima arte precisa de novos chamarizes, capazes de tirar o consumidor de casa. A projeção digital - que permite efeitos especiais como a imagem tridimensional, ou 3D, uma tecnologia muito cara se for feita em película - é uma ferramenta importante. No Brasil, essa novidade pode aumentar as vendas nas bilheterias e impulsionar o setor, que passa por um momento de baixo crescimento.

O processo de mudança nos Estados Unidos está avançado. Naquele país, os grandes estúdios uniram-se para criar um padrão de equipamentos e um formato para financiar essa troca. No Brasil, a indústria tenta montar, ainda este ano, uma comissão para discutir essa transição. O investimento necessário no Brasil é calculado em US$ 250 milhões.

Um valor considerável para a indústria nacional, que faturou no ano passado R$ 694,9 milhões, com crescimento de 3,2% em relação a 2005, segundo a Filme B, empresa brasileira especializada em números do setor. No mundo, estima-se que sejam necessários investimentos na ordem de US$ 9 bilhões em projetores, hardwares e softwares, segundo Luiz Gonzaga Assis de Luca, diretor de relações institucionais do grupo Severiano Ribeiro e autor do livro "Cinema Digital, um novo cinema?".

Nos EUA, os maiores estúdios de cinema, chamados de "majors" - Disney, Fox Films, Paramount, Sony Pictures Entertainment, Universal Pictures e Warner Bros. Studios - formaram uma joint venture em 2002 e criaram um padrão para a nova tecnologia. Após três anos de discussão, lançaram o padrão Digital Cinema Initiatives (DCI). Os filmes produzidos por esse poderoso grupo - responsável por 68% da bilheteria brasileira em 2006 - só poderão ser exibidos em salas com certificado DCI.

Marcelo Bertini, presidente do Cinemark no Brasil, diz que o padrão DCI será a "espinha dorsal" para o modelo a ser criado no Brasil. "Mas será necessário adaptá-lo ao mercado nacional."

Hoje, existem cerca de 145 salas no Brasil, de um total de 2,1 mil, com projetores digitais. Mas apenas duas dessas estão no padrão DCI - uma sala do grupo Cinemark, aberta em dezembro no shopping Eldorado, em São Paulo, e outra do Severiano Ribeiro em parceria com o UCI, que será aberta no Rio nesta sexta-feira.

Ou seja, os exibidores correm o risco de ficar sem conteúdo em suas salas por não terem o certificado das "majors". O primeiros teste ocorrerá com "Avatar", primeiro filme a ser concebido em tecnologia digital e tridimensional (3D), do diretor de James Cameron, o mesmo de "Titanic". O filme será lançado em 2009 pela Fox Films no padrão digital e em película. Fontes do setor dizem que os efeitos em 3D não serão replicados na película devido ao alto custo.

O tempo é curto para os países onde filmes americanos fazem sucesso. Estima-se que hoje os EUA tenham 4 mil salas no padrão DCI. Até o final de 2008, serão mais de 15 mil salas - de um total de 37 mil salas naquele país. "É provável que a indústria deixe de trabalhar com cópias em película cerca de dois anos após a completa digitalização do circuito norte-americano. Nos EUA, isso deve ocorrer por volta de 2010", diz Luca.

O grande impasse do setor, em diversos países, é sobre quem irá pagar a conta dessa transição. O principal investimento deve ser feito pelos exibidores - o projetor estipulado pelo DCI, importado, custa cerca de US$ 120 mil. Mas eles afirmam que não têm razões para bancar a mudança.

Os estúdios afirmam que o arquivo digital pode ser criptografado, o que garantiria segurança e qualidade. Além disso, "a percepção de qualidade do consumidor é cada vez maior. O cinema precisa ser melhor também", diz Patricia Kamitsuji, diretora geral da Fox Brasil. "Antes do padrão DCI, a qualidade do exibição digital não era tão boa quanto a da película. Por isso a migração não aconteceu antes."

Os principais beneficiados dessa troca são os distribuidores - tanto os braços comerciais dos grandes estúdios quanto os independentes. Cada cópia em película custa entre US$ 1,2 mil e US$ 3 mil. Nos EUA, um lançamento pode ter entre 4 mil e 5 mil cópias. O mercado brasileiro trabalha em proporções muito distintas. "2 filhos de Francisco", da Sony Pictures, por exemplo, teve 250 cópias.

Os custos com a distribuição serão reduzidos. "O cálculo de custo do frete é baseado no peso da uma cópia 35 mm, que gira em torno de 30 quilos", explica Luca, do grupo Severiano Ribeiro. Ao reduzir o peso e as dimensões das cópias a serem entregues nos cinemas, há um grande ganho em escala. A começar pelos armazéns que deixarão de existir, passando pela eliminação das fraudes provocadas por funcionários que desviam cópias para exibições clandestinas e culminando com os fretes que terão valores mínimos devido ao peso ínfimo dos HDs ou dos DVDs.

Hoje nos EUA as "majors" transferem os filmes digitais para discos rígidos em laboratórios (Technicolor ou Christie). Esse disco é enviado a representantes locais desses laboratórios, que instalam o disco no exibidor. No futuro a transmissão poderá ser feita via satélite.

Rodrigo Saturnino, diretor geral da Buena Vista International, distribuidora da Disney, estima um custo entre 30% a 40% menor na operação de distribuição. Marco Aurélio Marcondes, diretor de cinema da Europa Filmes, que distribuiu filmes no Brasil como "Menina de Ouro", calcula que o custo menor em cópias será de 15% para cada lançamento. Mas faz uma ressalva. "Teremos um investimento intensivo em tecnologia".

A transição nos EUA ocorre de forma acelerada porque o padrão DCI vislumbrou uma formato para o financiamento dessa mudança. Luca explica que no modelo adotado nos EUA, "o distribuidor arca com 75% dos custos e os exibidores pagam 25%, além da manutenção dos equipamentos". O distribuidor, que economizará entre US$ 2 bilhões e US$ 4 bilhões em película por ano, reinveste esse valor na troca de equipamentos das exibidores. Mas, para Luca, "esse modelo fica inviável no Brasil por causa dos impostos".

A discussão não ocorre apenas no Brasil. A Índia e a China "já avisaram que vão desenvolver modelos próprios para o cinema digital, mais baratos", informa um boletim da Filme B. Em outros países, como Noruega, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Cingapura, o governo está subsidiando a transição digital e investindo em sistemas próprios, para manter o cinema local.

No Brasil, a transição digital em um sistema alternativo ao das "majors" está avançada. A Rain Networks foi criada em 2002 e utiliza equipamentos mais baratos (porém incompatíveis com o padrão DCI). A empresa trabalha com 12 exibidores e cerca de 143 salas digitais. O foco, segundo José Eduardo Ferrão, CEO da Rain, é na menor unidade possível. Ou seja, o distribuidor pode comprar apenas uma sessão de determinado filme. "A idéia é dividir a tela com títulos que tenham a ver com o perfil da sala e do horário", diz. "Será que uma grade pulverizada por seção não atrairia mais público?"

A empresa brasileira presta serviços, principalmente, ao mercado cinematográfico de arte e para redes do interior dos Estados. Os distribuidores entregam o filme em uma fita master de alta definição para a Rain, que o transforma em arquivo digital e criptografado. Uma vez definida a programação, o filme digital é enviado por uma rede privada da Rain, através da internet, para os cinemas. Para Ferrão, esse formato elimina o risco do distribuidor, que não precisa, mais, bancar uma quantidade de cópias em película sem saber qual será o retorno de bilheteria.

Hoje, 10% da receita da Rain advém da venda das seções, 75% de publicidade e 15% da área de eventos. A sala de cinema, quando tem projetor digital, pode ser usada para eventos. A Rain já montou um campeonato com o jogo de videogame de futebol Playstation, da Sony, em uma sala de cinema do Reserva Cultura, em São Paulo.

Para Luís Henrique Ciocler, diretor da Centauro Equipamentos de Cinema e Teatro, a sala de cinema digital tem utilizações infindáveis, enquanto que há limites para os equipamentos em 35 mm - além do desgaste inevitável da película com o uso. "Com a tecnologia digital, surgem novos negócios para todos."