Título: Estabilidade e a popularidade de Lula
Autor: Edward Amadeo
Fonte: Valor Econômico, 17/05/2006, Opinião, p. A11

O que move as políticas públicas: a vontade popular ou o ideário dos partidos? Na história de um país, as prioridades vão mudando à medida que avançam as condições sociais e econômicas, a correlação de forças entre ganhadores e perdedores com as reformas e a mentalidade predominante. Os partidos têm seus princípios, ideários e programas mas não há como ignorar as preferências e os sinais emitidos pelo eleitorado.

O caso da Inglaterra é ilustrativo. O país com uma esquerda tradicional e um movimento sindical muito aguerrido escolheu, em 1979, a primeira grande reformista liberal do pós-guerra como primeira-ministra: Margaret Thatcher. O eleitorado optou pela ortodoxia liberal de Thatcher em três eleições e depois voltou a eleger os trabalhistas. Depois de dezoito anos no poder, o partido conservador perdeu as eleições para Tony Blair. Essa alternância se deu ao sabor das relações entre as prioridades da sociedade e a capacidade de encaminhar soluções dos partidos políticos, e foi capaz de mudar a Inglaterra para uma situação muito melhor do que há trinta anos atrás.

Outro exemplo foi a "Carta ao Povo Brasileiro" escrita pelo o comando da campanha do PT, em 2002, onde o compromisso com uma linha de política econômica, que se contrapunha à visão tradicional do partido, era firmado. A nova visão se alinhava com o pensamento e os anseios dos eleitores de centro, avessos a aventuras e às propostas heterodoxas do partido, cujos votos foram decisivos para eleger Lula.

Fernando Henrique foi eleito e reeleito com a bandeira da estabilidade da moeda em meio a repetidas crises e a alteração do regime cambial. Quando se imaginava que, em um ambiente externo mais tranqüilo, o seu sucessor teria um mandato marcado pelo crescimento econômico, eis que mais uma vez a estabilidade aparece como a principal estrela. Mais que isso, quem imaginava que essa escolha levaria à desilusão do povo e à perda de popularidade do presidente, se enganou - ou pelo menos é isso o que mostram até agora as pesquisas de opinião. A despeito da grave crise do seu partido e do seu governo, o presidente goza de prestígio exatamente porque perseguiu taxas de inflação mais baixas a cada ano de seu mandato.

É possível contestar essa idéia dizendo que o governo tem uma política ativa de distribuição de renda, com a ampliação do programa Bolsa Família e o aumento do salário mínimo, e que essa é a origem da aprovação do presidente. Mas as duas visões são complementares, antes que concorrentes. Por uma razão simples: a política de distribuição teria fracassado se a inflação tivesse aumentado em vez de diminuído. Se o governo aumenta o valor de um benefício em relação à inflação do ano passado e a inflação aumenta no ano seguinte, o ganho evapora no ar. O mesmo vale para os salários. Ao contrário, quando a inflação se reduz, isso reforça a política de distribuição.

Mesmo com a grave crise do seu governo, o presidente goza de prestígio porque perseguiu taxas de inflação mais baixas a cada ano de seu mandato Para dar um exemplo, nos últimos doze meses os salários cresceram 2,3% em termos reais, mas se a inflação tivesse sido o dobro teriam caído 2%. O mais importante: o salário real medido em termos de preços de alimentos aumentou 3,8%. Junte-se a isso os programas de distribuição e tem-se os ingredientes para a aprovação do governo Lula. A julgar pelas pesquisas de opinião, essa escolha veio de encontro à demanda da maioria da população.

Com exceção de 1986, ano do Plano Cruzado, 2004 registrou o maior rendimento familiar per capita do 1º ao 4º decís da distribuição da renda dos últimos vinte anos. E os índices de distribuição de renda de Gini e Theil estão no melhor nível desde os anos 1970. Esse é o resultado do compromisso com a estabilização dos governos FHC e Lula.

Lula poderia ter escolhido entre estabilização com crescimento ou estabilização com distribuição. Optou pelo segundo. Para fincar as bases do crescimento teria sido necessário aumentar a poupança do setor público, gastando menos com funcionalismo e transferências e abrindo espaço para a redução da taxa de juros e da carga tributária.

O aumento do gasto público com custeio e transferências de renda concorreu com a demanda privada e não ajudou em nada a expandir a capacidade produtiva. Com o risco de aumento da inflação, o Banco Central viu-se obrigado a manter os juros elevados para preservar a estabilidade, sacramentando a política de distribuição do governo. Os investimentos continuaram limitados pelo elevado custo do capital e carga de impostos. O crescimento dos quatro anos de Lula será baixo e errático.

Que parte da população aprova a opção distributivista de Lula? Aquela que recebe mais em transferências do governo do que paga em impostos e que tem dificuldades de ganhar a vida participando do mercado de trabalho devido à falta de instrução. Porque têm parca relação com os mercados, esses cidadãos dificilmente sairiam da pobreza com maior crescimento econômico. E, por isso, a opção do governo Lula de usar a estabilidade para distribuir em vez de crescer encontra tamanho respaldo na população pobre.

Os cidadãos que mais se beneficiam do crescimento não são os mesmos que mais se beneficiam da distribuição. Os primeiros vivem do mercado e os segundos dependem dos benefícios do governo. É possível que em algum momento a demanda social pelo crescimento se sobreponha à distribuição e o partido que melhor capturar essa mensagem terá mais chances de chegar ao poder. E quando chegar essa hora, no lugar de ampliar as políticas de transferência de renda como nos últimos quinze anos, o governo terá apoio social para promover o aumento de sua poupança e investimento e reduzir a carga de impostos.

Será que já veremos essa mudança nas eleições desse ano? Boa pergunta. Dependendo da leitura que fizerem os candidatos, a mensagem durante a campanha terá que espelhar essa escolha.