Título: Indignação popular virou lei
Autor: Souto, Isabella
Fonte: Correio Braziliense, 19/06/2010, Política, p. 6

eleições 2010

Da insatisfação de religiosos com a frouxidão da legislação à sanção do Ficha Limpa, a mobilização foi a tônica

Tudo começou nas eleições municipais de 2004. Decisões de juízes eleitorais do Rio de Janeiro indeferindo candidaturas de pessoas com ações judiciais em tramitação eram derrubadas em instâncias superiores sob a alegação de que não havia lei impedindo que réus ou condenados ¿ com recursos pendentes ¿ disputassem cargos eletivos. Incomodados com a situação, integrantes da arquidiocese fluminense encaminharam à Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) um documento retratando a questão. Desde então, o assunto virou pauta de encontros da Comissão de Justiça e Paz da CNBB.

Foram quatro anos de discussões e debates com alguns dos mais renomados juristas do Brasil à procura de brechas a partir da expressão ¿vida pregressa¿, encontrada no Artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição: ¿Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta¿.

A ideia foi apresentada ao Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) ¿ grupo que hoje engloba 46 entidades da sociedade civil ¿, que encampou a luta. O próximo passo foi definir como seria a campanha. ¿Não queríamos uma afirmação do negativo nem falar mal de políticos, que sempre são vinculados à corrupção¿, recorda Daniel Siedel, secretário-executivo da Comissão de Justiça e Paz. Por isso a opção de nomeá-la ¿ficha limpa¿ e não ¿ficha suja¿. Baseado em pareceres de juristas, um embrião de projeto foi encampado pelo MCCE.

Formiguinhas O texto foi aprovado por unanimidade em abril de 2008 na assembleia geral da CNBB e virou tema da campanha da fraternidade daquele ano. No mês seguinte, a campanha pelo voto em candidatos com ficha limpa virou tema de encontros religiosos em todo o Brasil e ganhou as ruas. Um trabalho de ¿formiguinha¿ estava começando: a coleta de pelo menos 1,3 milhão de assinaturas de eleitores em todos os estados para o envio, ao Congresso, de um projeto de lei de iniciativa popular barrando que réus em processos judiciais pudessem se candidatar. O Correio acompanhou a luta em defesa do projeto (veja abaixo).

Pouco mais de um ano depois ¿ em agosto de 2009 ¿, 980 mil eleitores tinham aderido ao movimento. Para atingir a meta de 1,3 milhão de assinaturas no mês seguinte, foi lançada nova campanha, batizada de ¿300 mil assinaturas em 30 dias¿. A tarefa não era fácil: em diversas paróquias foram feitos apelos aos fiéis, durante as missas, para a adesão. Um site na internet disponibilizou o formulário, que deveria ser entregue nas igrejas. O ator Milton Gonçalves gravou um vídeo veiculado na internet para defender a campanha.

Enfim, o resultado O esforço de milhares de anônimos deu resultado: em 29 de setembro de 2009 foi entregue à Câmara dos Deputados um projeto com mais de 1,3 milhão de assinaturas. A batalha agora era outra: convencer deputados e senadores a aprovarem uma lei que, futuramente, poderia ser ruim para eles mesmos. ¿Em tese, todo mundo era a favor, mas havia uma resistência gelatinosa. Não conseguíamos verificar quem era a favor ou contra¿, conta Daniel Siedel, secretário-executivo da Comissão Justiça e Paz.

Apenas em fevereiro deste ano o projeto começou a tramitar efetivamente, culminando na sua aprovação em abril. Algumas alterações no texto original foram feitas ¿ com a concordância do MCCE ¿ para evitar que a matéria fosse engavetada. A proposta vedava a candidatura de condenados em primeira instância, restrição que foi adiada para a condenação em tribunais. Também tornou-se possível a candidatura de alguém que obtiver na Justiça a suspensão da condenação, desde que autorizado pelo órgão que concedeu esse recurso favorável ao réu. Aprovado na Câmara, o projeto teria que seguir também para a votação dos 81 senadores.

Em 19 de maio, os 76 senadores presentes no plenário aprovaram o projeto sem qualquer modificação para evitar que ele retornasse à Câmara ¿ o que atrasaria ainda mais o processo e diminuiria as chances de ele entrar em vigor este ano. No último dia 4, o projeto virou lei com a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As novas regras serão adotadas nas eleições de outubro, quando estarão proibidos de disputar cargos políticos mesmo aqueles que tenham sido condenados antes do ato do presidente Lula ¿ conforme entendimento dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Antes da Lei Ficha Limpa, somente as pessoas condenadas pela Justiça sem direito a qualquer recurso ¿ o chamado trânsito em julgado ¿ eram impedidas de disputar eleições. Com a nova lei, fica proibida a candidatura de quem for condenado por crimes graves, como a cassação de mandato, crimes contra a vida, tráfico de drogas e improbidade administrativa. O prazo de inelegibilidade dessas pessoas também passou dos atuais três anos para cinco anos. ¿Depois do descrédito de muitos, valeu a pena todos esses anos de luta¿, comemora Siedel. (IS)