Título: 50 anos em 50
Autor: Kupfer, David
Fonte: Valor Econômico, 11/11/2009, Opiniao, p. A15

Há exatos 50 anos, em 18 de novembro de 1959, saía da linha de montagem da Volkswagen em São Bernardo do Campo o primeiro automóvel efetivamente fabricado no Brasil. Para muitos, essa data simboliza o verdadeiro início do processo de industrialização brasileiro. Estruturada no Plano de Metas, cujo lema era "50 anos em cinco", vivia-se então uma onda de desenvolvimento econômico sem precedentes cujo núcleo era a construção de um padrão de industrialização planejada. Recorrendo a um conjunto inédito de instituições e políticas, o Plano de Metas tinha uma natureza pragmática, conciliando instrumentos tão diversos quanto taxas diferenciadas de câmbio e controle de saída de divisas com um arcabouço legal e regulatório favorável à entrada do capital estrangeiro e ainda o recurso à participação direta do Estado nos investimentos na indústria de base e na infraestrutura.

Alguns anos depois, foi a vez de um segundo ciclo desenvolvimentista, organizado em torno do 1º e 2º Planos Nacionais de Desenvolvimento que o regime militar instaurado no país levou a cabo entre 1968 e 1979. Foram os anos do "Milagre Econômico" e do grande salto para a industrialização pesada. De alcance ainda maior, esse novo ciclo desenvolvimentista conjugou instrumentos que tornaram ainda mais visível a mão do Estado como coordenador dos investimentos, por meio principalmente de um protagonismo ainda maior da empresa estatal em quase todos os setores estratégicos para o prosseguimento do processo de industrialização acelerado do país.

Porém, a desestruturação do ordenamento econômico internacional pós-Bretton Woods, que atingiu seu ponto nevrálgico justamente nos anos finais da década de 1970 com as crises do petróleo e dos juros significou uma grande contração da liquidez nos mercados financeiros internacionais, jogando uma pá de cal no modelo altamente dependente de capitais externos que havia se instituído no país. Desde então, imersa em um quadro de profunda vulnerabilidade externa, a economia brasileira passou a enfrentar uma pré-disposição crônica ao baixo crescimento, diante da qual se sucederam um sem-número de planos frustrados de estabilização.

Somente em 1993, com a edição do Plano Real e, especialmente após a sua revisão, introduzida como resposta à crise cambial de 1999, que levou à adoção de um regime de metas de inflação com âncoras monetária e fiscal, que vigora até hoje, o objetivo foi alcançado.

Após duas décadas de busca incessante de condições macroeconômicas mais favoráveis à retomada do crescimento econômico, foi apenas no período que se inicia em meados de 2004 e se estende até setembro de 2008, quando do início da fase aguda da crise financeira internacional, que a economia brasileira passou a exibir claros sinais de que uma importante inflexão na trajetória anterior de desenvolvimento encontrava-se latente. As exportações cresceram em um ritmo inimaginável, refletindo, é certo, fatores exógenos ligados ao contexto favorável vigente nos mercados internacionais de commodities, mas também o aproveitamento das oportunidades trazidas pela reestruturação estratégica promovida pelas grupos empresariais brasileiros, que aos poucos vinham buscando o mercado externo como uma opção mais permanente de receitas e não somente como escoadouro de excedentes nas fases de recessão.

Mais importante, o mercado interno ressurgiu como principal força dinamizadora do crescimento, respondendo aos efeitos de políticas de rendas adotadas pelo governo brasileiro (aumentos reais do salário mínimo, Bolsa Família) e do retorno do crédito ao consumo que, com a maior estabilidade econômica, pode ser direcionado também para as classes de menor renda. Esses fatores conjugados estavam promovendo a mais significativa de todas as mudanças em curso nesses anos: tomava forma no país um forte ciclo de investimentos, como não se via desde a década de 1970. Desde 2005 a formação bruta de capital passou a crescer sistematicamente à frente do PIB, atingindo às vésperas do evento Lehman Brothers, que precipitou a crise financeira internacional em setembro de 2008, uma taxa de crescimento de quase 20% para uma expansão do PIB da ordem de 6%. Com isso, a taxa de investimento como proporção do PIB vinha em contínua ascensão, tendo deixado um piso de menos de 14% do PIB no primeiro trimestre de 2004 e rumava para valores já superiores a 19% no final de 2008, antes da grande crise se manifestar.

Evidentemente a crise internacional modificou profundamente essa trajetória, haja vista que, assim como em tantos outros países, o seu contágio no Brasil deu-se com grande força. Mesmo que, a partir dos dados mais recentes, as análises de conjuntura sugiram que a retomada dos níveis prévios de expansão da economia pareça ser agora apenas uma questão de tempo, em um plano de análise mais estrutural talvez não haja razão para tanto otimismo. Na medida em que os efeitos da grande crise forem ficando para trás, os desafios para o desenvolvimento industrial que já estavam postos desde a retomada pós-2004 irão retornar, provavelmente com maior força, em vista das implicações que uma expansão mais lenta da economia mundial tenderá a trazer sobre o acirramento da competitividade e a modificação dos padrões de concorrência, tanto para os exportadores brasileiros nos mercados internacionais, quanto para os fabricantes domésticos no mercado nacional.

Por isso, a saída da crise exigirá muito mais do que tão somente recuperar as engrenagens do círculo virtuoso do crescimento recente que, como visto, estava associado à transferência gradual do polo dinâmico da economia brasileira inicialmente das exportações para o consumo interno e, mais recentemente, daí para o investimento. Assim como há 50 anos, vão ser imprescindíveis novas políticas e instituições que quebrem o círculo nada virtuoso de especialização regressiva em que a atividade industrial encontra-se enredada, interrompendo a trajetória de concentração da pauta de produção e exportação em atividades baseadas em recursos naturais com perda de densidade nas cadeias produtivas. Do contrário, mais cedo ou mais tarde, o aumento do hiato de produtividade, competitividade e inovação do restante da indústria diante dos competidores internacionais irá comprometer o potencial de expansão da economia nacional, levando a que mais uma vez queimar etapas seja a exceção e não a norma da vida econômica brasileira.

David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras.