Título: As consequências econômicas do pré-sal
Autor: Vale, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2009, Opiniao, p. A18

A Petrobras está trabalhando com estimativas que podem não levar a excedente exportável nos próximos dez anos

Depois de dois anos do anúncio das descobertas de petróleo do pré-sal, o governo apresentou sua proposta de modelagem para a exploração das novas reservas. Não entraremos aqui no mérito do modelo, marcos legais, questões relativas a royalties etc.. Vamos nos concentrar em um ponto que não tem sido discutido e que trata dos impactos econômicos do pré-sal.

A primeira questão é que não se sabe exatamente ainda qual será a produção do pré-sal. As projeções do plano de investimento da Petrobras consideram que a produção de petróleo deverá dobrar até 2020. Dos estimados 2 milhões de barris deste ano, a produção alcançaria 3,9 milhões em 2020, sendo que a maior contribuição adicional seria da bacia do pré-sal. Ou seja, dobraremos a produção em 10 anos. Parece muito, mas na verdade pode não ser.

A diferença é que as perspectivas de crescimento da economia brasileira hoje são muito diferentes do que eram nos anos 80, quando a produção da Bacia de Campos começou. Agora, a perspectiva é de crescimento forte nos próximos anos. Com isso, a expansão da produção pode ser suficiente apenas para a demanda doméstica.

Apenas em dois momentos tivemos "sobra" de produção. Primeiro, na década de 50, quando a produção começou e ainda se buscavam usos para o produto. O segundo, na década de 80, porque a Bacia de Campos entrou em funcionamento durante uma crise econômica. Só nessas ocasiões a produção superou a demanda.

Utilizando métodos econométricos, estimamos uma elasticidade na produção de petróleo-PIB média de 1,6 no Brasil. Ou seja, para cada aumento de 1% no PIB brasileiro, a produção de petróleo deveria aumentar cerca de 1,6%, isso descontados os períodos de exceção das décadas de 50 e 80. Considerando um PIB médio de 4,5% de crescimento ao ano até 2020 (lembrando que entre 2004 e 2008 a média foi de 4,7%), a produção de petróleo necessária para atender a demanda em 2020 seria de 3,9 milhões de barris/dia.

Ou seja, a Petrobras está trabalhando com estimativas que podem não levar a excedente exportável nos próximos dez anos. Não custa lembrar que nos últimos dez anos a produção de petróleo também dobrou, mas a média de crescimento foi de apenas 3%, e não há excedente exportável ainda hoje. A Petrobras trabalha com um consumo doméstico de 3 milhões em 2020, o que nos parece muito baixo. E fala de 5,7 milhões de barris de produção daqui a dez anos, sendo 600 mil barris de produção fora do país e 1,1 milhão de barris equivalentes de gás, que supostamente poderiam substituir parte da importação da Bolívia. Assim, nas nossas contas, continua não sobrando petróleo para exportação.

O fundamental para essa diferença em relação ao passado é que o país tem perspectiva de forte crescimento nos próximos anos, o que pode jogar um pouco de água fria na rapidez que se coloca nessa capacidade exportadora do pré-sal. Valendo a elasticidade de 1,6 até 2030 a necessidade doméstica de petróleo subiria para 7,2 milhões de barris/dia, o que deve ser coberto pelo pré-sal, mas joga dúvidas ainda na capacidade de exportar o produto a longo prazo.

Uma segunda questão que se coloca é a quantidade de investimentos para os próximos anos. Em toda sua história, a Petrobras investiu US$ 174 bilhões. Nos próximos cinco anos se propõe investir a mesma quantidade. São 50 anos em cinco de investimento. Se de fato a perspectiva de produção não parece ser tão forte assim, fazer investimentos dessa magnitude pode trazer prejuízos à rentabilidade da empresa.

Além disso, um terceiro ponto coloca a questão do impacto dos investimentos nas importações. Há uma certa "obrigatoriedade" de que 65% de todo o investimento feito seja em máquinas e equipamentos domésticos. No novo modelo, a Petrobras será ainda mais monopsonista. Mesmo sendo empresa de capital aberto, existem riscos de favorecimento de preços maiores de insumos e máquinas e equipamentos quando se compara com um monopsônio privado. Isso pode levar a desvio de produção. Num momento de crescimento da economia pode haver pressão nas importações de máquinas e equipamentos diretamente, para o próprio setor, e indiretamente, por desvio de produção.

Por fim, um quarto ponto relaciona-se à eficiência energética, à questão ambiental e a combustíveis substitutos. No caso da eficiência, ela aconteceu em países com aperto de fornecimento de energia, como a Europa das duas últimas décadas. Em país com abundância energética a partir de agora, é difícil imaginar a busca de caminhos por eficiência. No caso ambiental e de combustíveis substitutos um candidato natural seria o álcool e toda a cadeia alcoolquímica que pode surgir daí.

Não havendo interferência estatal no setor de cana, pode ser que no longo prazo a matriz energética passe a depender mais de álcool do que de petróleo. Isso porque se supõe que num horizonte longo de tempo empresas estatais tendem a ser menos eficientes que as privadas. A questão é a estratégia a ser usada: incentivaremos cada vez mais o álcool aqui dentro e viraremos exportadores de petróleo ou todas as atenções se viraram para a galinha fácil dos ovos de ouro que se tornou a Petrobras? Dado o histórico de planejamento energético ineficiente do país nos últimos 30 anos, o efeito do pré-sal poderá ser sujar ainda mais a matriz energética brasileira.

O que tudo isso quer dizer? Que, talvez, nem a explosão das importações nem das exportações possa acontecer nos próximos 10 anos. Talvez estejamos apenas aumentando uma oferta necessária para o consumo doméstico. Talvez toda a discussão sobre a maldição do petróleo e a doença holandesa esteja equivocada nos próximos 10 anos. Mas a única certeza que se tem é da maior presença estatal na produção de petróleo no Brasil. Sabendo de antemão que a eficiência estatal é, em geral, menor que a privada, o processo pode ser mais lento do que o desejado e pode se mostrar um retrocesso.

Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados