Título: Além da desilusão revolucionária
Autor: Václav Havel
Fonte: Valor Econômico, 27/03/2006, Opinião, p. A13

Vantagens da participação da Ucrânia na Otan superam quaisquer desvantagens

Toda revolução, em última instância, transforma-se de euforia em desilusão. Numa atmosfera revolucionária de solidariedade e auto-sacrifício, as pessoas tendem a pensar que quando sua vitória for completa, o paraíso na Terra será inevitável. Evidentemente, o paraíso nunca chega, e - naturalmente - vem o desapontamento. Esse parece ser o caso hoje na Ucrânia, quando sua população prepara-se para eleger um novo Parlamento, pouco mais de um ano após o sucesso de sua Revolução Laranja. Desilusão pós-revolucionária, particularmente após as revoluções contra o comunismo - e, no caso ucraniano, uma revolução contra um pós-comunismo - tem raízes psicológicas. O novo cenário impôs novos desafios para a maioria das pessoas. Antes, o Estado decidia tudo, e muitas pessoas, especialmente da geração hoje na meia-idade ou idosas, começaram a sentir a liberdade como um ônus, porque esta implica em incessantes tomadas de decisões. Por vezes, já comparei esse desgosto psicológico à minha própria vivência após deixar a prisão: durante anos, aspirei à liberdade, mas quando finalmente fui solto, passei a ter de tomar decisões o tempo todo. Confrontados de uma hora para outra com muitas opções todos os dias, começamos a sentir dores de cabeça e, às vezes, inconscientemente, queremos voltar à prisão. Essa depressão é, provavelmente, inevitável. Mas na escala de uma sociedade inteira, a depressão é, ao cabo de algum tempo, superada pelo crescimento das novas gerações. Com efeito, 15 anos depois da desintegração da União Soviética (URSS), uma nova catarse parece em andamento, e a Revolução Laranja ucraniana foi parte disso. Como tão claramente evidenciado na Ucrânia, o processo de autolibertação do comunismo foi, por definição, associado a uma gigantesca privatização. Naturalmente, os membros do velho establishment, com seus contatos e informações privilegiadas, ganharam muito com as propriedades privatizadas. Esse processo "inevitável" envenenou a vida política e a mídia, do que resultou um estranho estado de liberdade limitada e um ambiente mafioso. As gradações foram distintas em cada país no mundo pós-comunista, mas as novas gerações emergindo nessas sociedades agora parecem já não suportar mais isso. A Revolução Laranja na Ucrânia, assim como a Revolução Rosa na Geórgia, parecem confirmar isso. As revoluções no fim da década de 80 e início dos anos 90 tiveram como alvo regimes comunistas totalitários, mas hoje visam exterminar esse tipo de pós-comunismo mafioso.

As revoluções no fim dos anos 80 tiveram como alvo regimes comunistas totalitários, mas hoje visam exterminar o pós-comunismo mafioso

Mas para tornar a mudança irreversível, é fundamental a existência de um Judiciário efetivamente independente e incorruptível. Com muita freqüência, em casos envolvendo interesses políticos, as suspeitas e acusações de impropriedade não são investigadas até um final inequívoco. Isso é compreensível: o sistema judicial comunista era manipulado para servir o regime, e milhares de juízes não podem ser substituídos de um dia para outro. Embora seja clara a impossibilidade de um retorno à velha URSS, alguns culpam a influência russa pela desilusão na Ucrânia. Sim, há alguns elementos alarmantes na política russa, principalmente porque a Rússia nunca soube realmente onde começa e onde termina. Os russos foram donos ou dominaram muitos outros países, e agora é apenas a contragosto e com relutância que estão lidando com todas essas perdas. Algumas das declarações de Vladimir Putin, presidente russo, parecem incorporar uma nostálgica recordação da era soviética. Com efeito, ele declarou recentemente que a desintegração da URSS foi um erro trágico. Mas a nostalgia soviética tem muito mais a ver com as tradicionais ambições russas de ser uma grande potência do que com o comunismo. A Rússia, acredito eu, deveria afirmar claramente - e a comunidade internacional deveria dizer claramente à Rússia - que as fronteiras definidas não serão questionadas, porque disputas de fronteiras estão no cerne da maioria dos conflitos e guerras. Por outro lado, não quero demonizar Putin. Ele pode vender seu petróleo mais barato para alguém próximo, como o ditador de Belarus, Alexander Lukashenko, e cobrar preços de mercado de outros países, mas isso, basicamente, é tudo que ele pode fazer. Eu não vejo quaisquer conflitos graves além disso. As promessas de integração ao Ocidente são uma das razões pelas quais conflitos parecem impossíveis, pois trata-se de uma questão tanto de geografia como de valores compartilhados e de cultura comum. A Ucrânia pertence a uma entidade política européia unida; os valores endossados pela Ucrânia - e que estão entranhados em sua história - são europeus até a raiz. A experiência tcheca mostra que a implementação de todas as normas da União Européia visando qualificar o país para uma admissão à UE levará algum tempo. Mas, em princípio, também a Ucrânia poderá ter êxito. Praticamente as mesmas considerações são válidas para a Ucrânia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Alianças baseadas em regras, padrões e valores compartilhados são o coração da segurança no mundo moderno. Além disso, a Otan define, de certa forma, a esfera de uma civilização, o que, naturalmente, não significa que a comunidade da Otan seja melhor do que qualquer outra. Mas trata-se de uma comunidade à qual é benéfico pertencer - desde que as pessoas assim desejem e que, historicamente, faça sentido para elas. Uma participação na Otan implica em obrigações, porque podem surgir situações - e já as vivemos - em que a Otan atenda um apelo da ONU e pratique uma intervenção militar fora de sua área, onde, por exemplo, esteja sendo praticado genocídio. Em outras palavras, a participação na Otan, como a admissão à UE, tem um preço. Entretanto, creio que as vantagens superam de longe quaisquer possíveis desvantagens. Cabe aos ucranianos decidir isso eles mesmos - e assim superar a desilusão pós-revolucionária.