Título: A novela sem fim das medidas provisórias
Autor: Carlos Pereira, Timothy J. Power e Lucio Rennó
Fonte: Valor Econômico, 20/03/2006, Opinião, p. A14

Eliminação do trancamento da pauta é essencial

No último dia 8 de fevereiro, o Senado aprovou em segundo turno, uma nova proposta de emenda constitucional que altera o rito de tramitação das medidas provisórias. Novamente, o Congresso tenta reduzir a autonomia do Poder Executivo. Será que dessa vez a proposta atingirá seus objetivos? Em 11 de novembro de 2001, o Congresso aprovou a PEC 32, que alterou a emissão de MPs. A proposta estabelecia que o Congresso teria que se manifestar sobre cada MP encaminhada pelo presidente. Caso contrário, a pauta estaria trancada até que fosse emitido seu parecer. A medida visava aumentar a influência do Congresso, além de reduzir o número de MPs. A lógica era simples: ao aumentar os custos de aprovação das MPs, o presidente passaria a usar menos essa ferramenta e passaria a usar com mais freqüência a legislação ordinária (projetos de lei e projetos de lei complementar). Ledo engano. A reforma de 2001 mostrou-se um tremendo fracasso! Em entrevista recente, o presidente do Senado, Renan Calheiros, revelou que a pauta do Congresso esteve trancada por conta de MPs em 65% das sessões. Ou seja, ao invés de restringir o uso de MPs, a reforma parece ter aumentado o apetite do presidente pelo uso dessa estratégia legislativa. O tiro da reforma saiu pela culatra! Após a reforma em 2001, um período que abrange 15 meses do segundo mandato de FHC e três anos de Lula (até dezembro de 2005), o número médio de MPs por mês passou de três para cinco. Por outro lado, o número médio de projetos de lei manteve-se estável. O aumento no número de MPs sugere que o Executivo passou a utilizar ainda mais MPs em detrimento de legislação ordinária. Antes da reforma, de todas as propostas legislativas baseadas em maioria simples (exclui-se, portanto, emendas constitucionais), 28% eram MPs. Após a reforma, essa porcentagem passa para 52%. Se levarmos em conta que de todas as MPs enviadas ao Congresso, 79% foram aprovadas pelo plenário, isso indica que o Executivo continua governando com base em legislação extraordinária. O Congresso é forçado a se manifestar, tem sua agenda praticamente tomada por MPs e quase sempre se posiciona favoravelmente a elas. A reforma de 2001, em outras palavras, ampliou a autonomia do presidente.

Nova proposta de reforma atribui responsabilidade ao Executivo de constituir maioria para evitar que a MP perca sua eficácia

A nova proposta do senador Antônio Carlos Magalhães é de aumentar o poder da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no julgamento do critério de urgência da medida proposta. Como está hoje, a MP segue diretamente ao plenário, mesmo que a CCJ não tenha se manifestado. Essa proposta prevê que caberá às CCJs de cada Casa aprovar, em três dias úteis, a admissibilidade da MP, analisando sua urgência e relevância. Só a partir dessa aprovação a MP entrará em vigor. Do contrário, a MP tramitará como PL. O custo de fazer com que a medida seja votada, portanto, passa a ser do Executivo. Além disso, a proposta cria mais um ator com capacidade de veto na tramitação da medida, o voto mediano da CCJ na respectiva Casa, pois haveria alternância entre Câmara e Senado na apreciação. Será que essa reforma conseguirá diminuir a incidência de MPs? A proposta constitui um avanço, principalmente por atribuir responsabilidade ao Executivo de constituir uma maioria para evitar que a MP perca sua eficácia se o Congresso não se manifestar no prazo de 120 dias. Entretanto, não altera outro problema fundamental gerado pela reforma anterior, que é o trancamento da pauta. Com o trancamento obrigatório da pauta para avaliação de MPs, o Executivo tem ainda mais poder sobre a agenda do Congresso. MPs que trancam a pauta forçam o Congresso a discutir o que o presidente quer que se discuta. Controle da agenda é fundamental no jogo legislativo. Mantido esse aspecto, mantêm-se as propensões do Executivo de usar MPs. Admitir mais um ator ao jogo (a CCJ) não mudaria necessariamente o quadro: nada impede que o Executivo passe a usar seus vários instrumentos de poder e de transferência de recursos para garantir que aliados ocupem a maioria das posições na CCJ. Uma CCJ dócil aumentará ainda mais a legitimidade do uso de MPs, o que pode levar a um aumento no uso de tais medidas. Qual, então, seria a solução? Se o Congresso quer de fato restringir o "abuso" de MPs, sem no entanto abolir o uso desse instrumento legislativo, há duas alternativas: uma de escopo modesto e outra mais ambiciosa. A primeira é associar a aprovação de MPs à formação de maiorias no plenário do Congresso sem o trancamento da pauta. No caso, as únicas mudanças às regras atuais seriam a alteração no requisito de trancamento da pauta e a definição que, se terminado o prazo de 120 dias sem que o Congresso se manifeste, a MP passe a tramitar como PL. Não nos parece haver necessidade de mudanças no papel da CCJ caso uma proposta como essa estivesse em vigor. Uma alternativa mais ambiciosa é exigir uma maioria extraordinária para aprovação de MPs, semelhante a maioria de 60% que hoje é exigida para aprovação de uma PEC (sugerimos, entretanto, que seja em turno único de votação). A aprovação de uma MP sob esse critério mostraria que o plenário está de acordo que o decreto tenha atendido aos requisitos constitucionais de "urgência e relevância". Ao requerer um amplo consenso desde o primeiro momento, tal reforma tornaria desnecessárias comissões de admissibilidade ou a intervenção da CCJ, que poderiam aumentar ainda mais os custos de transação. Além do mais, a exigência de maioria extraordinária serviria como advertência ao presidente que somente propostas de grande necessidade poderiam virar MPs. Mas, caso a MP não fosse votada após 120 dias, ela passaria a tramitar como PL. Eliminar o trancamento de pauta, portanto, nos parece central, seja em uma reforma ampla (onde poderíamos prever uma redução drástica no número de MPs) ou restrita (onde o presidente ainda desfrutaria de uma maior papel legislativo). Só assim, a poderosa caneta do presidente seria transformada em lápis, e o Congresso teria ainda maior capacidade de fazer alterações nas propostas do Executivo.