Título: Concepções e riscos do fim da cobertura cambial
Autor: João Sicsú
Fonte: Valor Econômico, 10/02/2006, Opinão, p. A12

Se projeto for aprovado, exportadores terão de se especializar na atividade de especulação

Os senadores Renan Calheiros e Fernando Bezerra apresentaram projeto que altera a legislação cambial brasileira, cuja proposta central é extinguir a cobertura cambial nas exportações, ou seja, o fim da obrigatoriedade de exportadores venderem seus dólares no mercado de câmbio brasileiro. Detalhes sobre a proposta e seus argumentos específicos serão tratados em outro artigo a ser publicado neste espaço oportunamente. Trato aqui e agora somente da concepção e riscos que envolvem tal proposição para a macroeconomia brasileira. O fim da cobertura cambial será uma medida instabilizadora do câmbio, já que a venda de dólares no país resultante do fluxo comercial, que é uma variável bastante previsível e estável, tornar-se-á um fluxo movido por cálculos especulativos. Exportadores terão que se especializar na atividade especulativa de cálculo do momento ótimo para venda de dólares. Em momentos críticos, empresários exportadores poderão adiar a venda, esperando uma maior desvalorização da taxa de câmbio; ou diante de uma valorização, poderão acentuar a tendência na expectativa que a situação poderá ser pior ainda para a venda no futuro. Os fluxos de dólares advindos de transações comerciais tenderão a ficar, portanto, assemelhados aos fluxos financeiros internacionais, com movimentos mais imprevisíveis, transformado-se, então, em mais uma variável capaz de instabilizar o cenário macroeconômico. Os fluxos comerciais de dólares serão transformados em reais de acordo com as mesmas variáveis que influenciam a entrada de capitais financeiros no país: diferencial de juros interno e externo, expectativa cambial e risco de default. De um ponto de vista macroeconômico, o fim da cobertura cambial poderá alterar o funcionamento da economia. Sob estas novas condições, o Banco Central do Brasil terá dificuldades para formar reservas, já que a quantidade de dólares vendida pelas empresas exportadoras poderá ser bem menor. Os superávits comerciais poderão não ser mais sinônimos de megaingressos de dólares no mercado de câmbio do país: os importadores enviarão dólares ao exterior, mas os exportadores não venderão necessariamente os seus dólares no mercado de câmbio brasileiro. Apesar da economia gerar superávits comerciais, as importações podem ter que ser financiadas, em determinadas situações, com ingressos de dólares que viriam pela conta de capital e/ou com perdas de reservas por parte do Banco Central, tal como se o país estivesse contraindo déficits comerciais. A única fórmula de o país manter a sua conta de capital atrativa para os investidores financeiros internacionais e, assim, atrair dólares para financiar eventualmente as suas importações, será mantendo uma elevada taxa de juros, o que eleva os encargos da dívida pública e dificulta o crescimento econômico. Com o fim da cobertura cambial, o próprio fluxo de dólares que entra no mercado de câmbio, referente às operações realizadas na conta de transações correntes, dependerá a partir de então também da taxa de juros interna, tal como às operações referentes à conta de capital.

A ação especulativa é instabilizadora; a ação pública é que deve se opor aos humores do mercado, a fim de estabilizá-lo

Está subjacente a esta concepção do fim da cobertura cambial a idéia que um Banco Central que opera com um regime de taxa de câmbio plenamente flutuante cuja moeda é totalmente conversível não precisa formar reservas internacionais. Nesse modelo, a escassez de dólares na economia provocaria uma desvalorização cambial, o que, por sua vez, seria um estímulo para que exportadores vendessem seus dólares - o que, por seu turno, tenderia a valorizar o câmbio novamente; ou seja, o câmbio seria flutuante, mas estável, dada a ação dos exportadores e não do Banco Central. Milton Friedman, o maior expoente do monetarismo, já defendia idéias assemelhadas desde a década de 1950. Segundo Friedman, se um país adota um sistema cambial de flutuação pura, seu banco central não deve formar reservas e, portanto, não deve intervir no mercado de câmbio: os especuladores estabilizariam a taxa de câmbio. O mecanismo apresentado como sendo natural da atividade especulativa era simples (e quase ingênuo, à luz das experiências das crises cambiais do final dos anos 1990): se o câmbio se desvalorizasse, especuladores venderiam dólares para realizar ganhos; e, se o câmbio se valorizasse, especuladores comprariam dólares para formar um portfólio a custo mais baixo. Em outras palavras, os especuladores venderiam na alta e comprariam na baixa, mantendo assim o preço da moeda estrangeira estável. Contudo, na realidade, diante da ocorrência de eventos inesperados em trajetórias de preços, as expectativas se tornam elásticas - e não convergentes, como afirmava Friedman. Esta idéia pode ser resumida da seguinte forma: quando um determinado preço (taxa de juros, taxa de câmbio etc.) sofre uma alteração atípica de nível, as expectativas tendem a se espalhar, isto é, enquanto uns avaliam que o preço continuará subindo, outros avaliam que iniciará um processo de queda e, a partir de suas expectativas, tomam decisões de compra ou venda do ativo. O preço, então, sofre um segundo movimento seja num sentido ou no outro; daí novas apostas de compras e vendas são realizadas. É isto que explica a alta volatilidade de determinados preços quando existe uma abrupta reversão do quadro de estabilidade. Em suma, diante da possibilidade da livre movimentação de um determinado preço e, em situação particulares, de ocorrência de choques, o que predomina é a especulação, a volatilidade e não a estabilidade. Vem daí a idéia que o Banco Central deveria acumular reservas, de forma precaucionária, para tentar dominar situações em que poderia ser esperado um movimento do câmbio para qualquer sentido abruptamente. Somente quando o Banco Central possui uma quantidade exagerada de reservas aos olhos do mercado é que suas ações podem dirigir, ou fazer convergir, as expectativas privadas, estabilizando-as e, em conseqüência, dando estabilidade à taxa de câmbio. A história recente de inúmeras crises cambiais nos anos 1990 e no Brasil até recentemente mostrou que Friedman estava errado. Não há mais qualquer dúvida de que a ação especulativa é instabilizadora e que é a ação pública, dirigida, que deve se opor aos humores do mercado com o objetivo de estabilizá-lo. A novidade da concepção liberalizante do fim da cobertura cambial em relação às idéias de Friedman é tão-somente que o potencial estabilizador da taxa de câmbio não seria o especulador, mas sim o exportador. Ele desenvolveria essa nobre tarefa de agir como um estabilizador; teria que agir, portanto, como o especulador friedmaniano: vendendo dólares na alta e mantendo fora do mercado de câmbio os recursos na baixa. Contudo, a realidade mostrou que os especuladores não desenvolvem o comportamento esperado por Friedman. Portanto, não se deve esperar um comportamento dos exportadores diferente do comportamento dos especuladores. Ambos vão agir de braços dados para instabilizar a taxa de câmbio.