Título: Escassez de lógica na ação de Putin
Autor: Quentin Peel
Fonte: Valor Econômico, 06/01/2006, Opinião, p. A9

Recente confronto da Rússia com a Ucrânia sobre o preço do gás foi previsível e contraproducente

Seja lá o que possamos pensar de Vladimir Putin como líder russo, estúpido e míope não são os tipos de adjetivos que saltam à mente. Ele impressiona todos os seus interlocutores como sendo alguém interessado em idéias e capaz de ver o grande cenário. Embora no fundo um burocrata, com uma tendência para ponderar cada conseqüência de toda decisão antes de chegar a qualquer conclusão, Putin não é alguém que se deixe desviar, por considerações de curto prazo, de um objetivo de longo prazo. O sucesso de Putin em reimpor ordem no caos político e econômico deixado por seu predecessor, Boris Yeltsin, foi notável. Sem dúvida, ele o fez às custas de uma democracia genuína, ao reafirmar a autoridade do Kremlin e de seus serviços de segurança. A reimposição, por Putin, do controle estatal sobre os altos escalões de comando da economia russa - sobre o setor energético, em especial - coincidiu com uma forte alta nos preços do petróleo e do gás, proporcionando um duplo bônus para o tesouro russo. Não se trata do desabrochar da democracia e do florescimento da economia de mercado que os observadores ocidentais tradicionais poderiam ter gostado de ver. O império da lei é arbitrário e os direitos à propriedade, incertos. Mas o sistema de Putin faz sentido para muitos russos que deploram a derrocada da União Soviética e anseiam que a Rússia recupere seu orgulho e influência mundial. Assim, como é possível explicar a maneira flagrantemente canhestra e incompetente de Putin e de seus aliados mais próximos no Kremlin e na Gazprom - gigante do gás que é a fonte real de seu poder econômico - em seu mais recente confronto com a vizinha Ucrânia sobre o preço e fornecimento de gás russo? Foi tudo tão previsível e, ainda assim, surpreendentemente contraproducente. Em primeiro lugar, ao fechar as válvulas do gasoduto que passa pela Ucrânia e transporta 80% do suprimento russo para os mercados da Europa Central e Ocidental - ainda que durante um breve período e simplesmente com a intenção de suspender o fornecimento à própria Ucrânia -, Putin provocou repercussões através de todo o continente. Ficou dramaticamente claro para os países membros da União Européia (UE), especialmente a Alemanha, os riscos de depender excessivamente da Rússia como principal fonte de suprimento de energia. O incidente constituiu uma salutar advertência à UE para que diversifique suas fontes de gás, estabeleça fontes alternativas de energia e integre seu mercado energético de maneira que seja muito mais fácil administrar possíveis crises de escassez. A UE deveria ficar absolutamente grata a Putin pela lição de insegurança energética. O incidente poderá galvanizar ações no sentido da criação de um mercado energético interno com funcionamento adequado. Mas terá sido o impasse favorável aos interesses de Moscou? A ex-União Soviética foi escrupulosa no respeito a seus contratos de fornecimento de gás, mesmo quando havia turbulência nas relações políticas com o Ocidente. A mais recente atitude contra a Ucrânia - e o episódio similar de dois anos atrás, quando o fornecimento a Belarus foi reduzido, num surto de agressividade kremliniana -, comprometeram a reputação moscovita de confiabilidade. Putin normalmente teria sido suficientemente sofisticado para compreender que a chave de êxito em diplomacia energética é a previsibilidade. Trata-se de uma política que deve ser conduzida com incentivos, e não com ameaças. Como um dissuasor nuclear, nunca deveria ser empregada para punir.

Ficou dramaticamente claro para os países membros da UE os riscos de depender muito da Rússia como principal fonte de suprimento de energia

Talvez ele tenha se deixado levar pela situação especial da Ucrânia. Há, certamente, muitos falcões em sua entourage que não podem perdoar Viktor Yushchenko e seus aliados em Kiev por sua Revolução Laranja no ano passado. Eles vêm falando há meses em "punir" o regime ucraniano por sua impertinência em buscar relações mais próximas com Bruxelas do que com Moscou. A Gazprom deu-lhes a oportunidade. Entretanto, mesmo nesse terreno a ação parece ter sido contraproducente. Talvez os assessores de Putin julgassem que assim atrairiam votos para candidatos pró-Rússia nas próximas eleições parlamentares em março, com o argumento de que conseguiriam melhores termos para o fornecimento do gás de Moscou. Todas as evidências apontam para o oposto: a linha-dura russa parece ter reanimado a popularidade de Yushchenko, visto como alguém que levantou-se em nome da Ucrânia contra o brutamontes russo. É apenas no plano doméstico que Putin parece ter ganho algum bônus político por sua atitude, e ainda assim somente graças à apresentação da versão russa do incidente em TV nacional. Na mídia russa, o acordo firmado ontem é considerado como um triunfo para a Gazprom, ao conseguir o preço de "mercado" que cobrava para fornecer seu gás, ainda que isso tenha significado ceder a maior parte do mercado a fornecedores alternativos da Ásia Central a preços inferiores. Se Putin acreditava que os membros da UE culpariam a Ucrânia pelo incidente todo, estava enganado. Embora haja nervosismo real em Bruxelas diante do desejo de Yushchenko de entrar para a UE, há grande simpatia para com a determinação de Kiev de praticar maior independência em relação a Moscou. Há duas explicações possíveis para as ações de Putin. Uma delas é que ele teria permitido que sua ampla visão estratégica fosse toldada pela irritação em face da atitude rebelde de uma ex-república soviética. Foi assim também com a Letônia, Lituânia, Estônia, Georgia, e com a Ucrânia por ocasião de sua mudança de regime 12 meses atrás. O Kremlin tem muita dificuldade em abandonar suas velhas atitudes imperiais em relação ao "exterior próximo". A outra explicação é que Putin sabia exatamente o que estava fazendo, e quis mandar uma advertência bastante clara à Europa Ocidental sobre sua dependência em relação ao suprimento energético russo. Ele sabe que as alternativas são relativamente poucas e não atraentes. Talvez ele não se importe com a reação negativa. Será a UE capaz de demonstrar a Putin que ele está errado?