Título: Classe média: razão e sensibilidade
Autor: Rosângela Bittar
Fonte: Valor Econômico, 17/11/2004, Política, p. A8

Mais do que as perdas de seus ganhos, já reduzidos pelas excessivas subtrações de salário e renda por taxas e impostos, que penalizam esse grupo social em qualquer governo - desde Delfim, passando por Malan e agora Palocci, sempre, vive-se sob o axioma do pode pagar mais aquele que já paga muito - a classe média teria outras razões para abandonar o PT em algumas grandes cidades nas últimas eleições municipais. Debates internos têm sido feitos no governo, com a participação de partidos aliados, ainda em busca das explicações sobre o afastamento da classe média das teses do governo petista. Algumas constatações a respeito desse fenômeno eleitoral de 2004 já foram feitas: 1- A classe média, ao contrário do que se vem propagando, não é contra a esquerda, representada nessas eleições municipais pelo PT; 2- A classe média vota na esquerda, que sempre considerou generosa e humana, porque teoricamente se preocupa com os pobres; 3- A classe média tem verdadeira fobia ao autoritarismo, tem medo de qualquer gesto impositivo nas gestões de suas vidas e seus empregos. Este teria sido, então, o ponto principal. Aquilo que fez com que a classe média não tivesse corrido em massa para os candidatos do PT e seus aliados da esquerda em todos os grandes centros. Na análise em questão, destacam-se que Fernando Pimentel, em Belo Horizonte, João Paulo, em Recife, Marcelo Déda, em Aracaju, Luizianne Lins, em Fortaleza, venceram as disputas municipais com o apoio da maioria esmagadora da população, portanto, inclusive da classe média. Há dados preliminares indicando, também, que nas votações da esquerda, mesmo a derrotada, como Jandira Feghali (PCdoB) e Jorge Bittar (PT), no Rio, a classe média esteve muito presente. Porém, São Paulo e Rio Grande do Sul são os centros de dois grandes eleitorados do PT em que os dados preliminares, ainda em compatibilização, apontam ausência da classe média em comparação com as disputas anteriores. Este afastamento teria se dado tanto pelas razões mais óbvias, de insatisfação com o tratamento dos governos petistas, que não têm um só programa de governo para este grupo, de quem só tira e a quem nada dá, como também, e principalmente, pelo temor ao autoritarismo, cultivado ao longo deste ano. O governo Fernando Henrique, que antecedeu ao do PT, como de resto também os que o antecederam, sobrecarregaram igualmente a classe média no que diz respeito às taxações. Mas não ficaram marcados como inimigos deste grupo, talvez porque tenham lhe concedido atenção compensatória, de alguma forma. O governo petista não criou nada, em nível federal, estadual ou municipal, para a classe média. Especialmente nos dois Estados em questão, foram identificadas situações políticas que, ao contrário, afastaram ainda mais a classe média da esquerda. Criou-se, até mesmo, um sentimento de profunda desconfiança das convicções democráticas do PT. Para integrantes do governo, a formulação da estratégia da oposição se deu em três momentos neste ano eleitoral. Primeiro, os adversários tentaram enfrentar o PT e seus aliados na questão da moralidade, a partir da explosão do escândalo Waldomiro Diniz, sub-chefe da Casa Civil flagrado cobrando propina. Com o arquivamento da investigação sobre o caso, a oposição tentou, na análise do governo, explorar o desemprego e a recessão na campanha eleitoral. Também não teria sido bem sucedida.

Intolerância afastou mais votos do que os impostos

Derrotadas as teses da imoralidade e do desemprego, os adversários do governo, na avaliação dos que o comandam, partiram, desta vez com sucesso, para a questão do autoritarismo. Admite-se que os adversários foram ajudados por uma série de fatos mal digeridos à época, como a criação da Ancinav, recebida como uma agência controladora da cultura, a criação do Conselho Federal de Jornalismo, concebido para controlar a imprensa, a expulsão - depois revertida - do repórter americano Larry Rohter, por suposta ofensa ao presidente. Esta confluência fez surgir o sentimento do medo, da desconfiança, das preocupações com ameaças à liberdade. Esses fatos tiveram significado para o eleitorado. Nos termos preferidos do governo, a oposição conseguiu "impregnar" na classe média, contra o PT, o traço do autoritarismo, criando uma onda de que o partido é monopolista, agarra-se à máquina, é intolerante e perigoso. Para ter sucesso eleitoral em 2006, como teve em 2002, o governo está convicto de que não deve fugir da realidade e precisa reaproximar-se da classe média. Não bastariam, para isto, rever impostos, reduzir carga de tributos, ou corrigir a tabela do Imposto de Renda, como já se anuncia entre as primeiras providências. Isto atenderia só a uma parte, embora significativa, da insatisfação, como se pode ver em estudo recente do economista Waldir Quadros, da Unicamp, publicado na "Folha de S. Paulo" da última sexta-feira. Ele mostra como empobreceu a classe média, inclusive em 2003, o primeiro ano da era Lula. A perda de renda da classe média alta (acima de R$ 5 mil) foi de 4,74%, da classe média média (de R$ 2,5 a R$ 5 mil) foi de 1,57%, e da média baixa (de R$ 1 mil a R$ 2,5 mil) foi de 1,05%. Segundo Quadros, 2,5 milhões de pessoas saíram da classe média no ano passado. Em 2002, eram 57 milhões os integrantes de famílias com perfil de renda acima de R$ 1 mil: em 2003, eram 54,4 milhões, para uma população total de 173 milhões. Só na classe média alta o número de pessoas caiu 13% no ano passado. O autor atribui quase tudo nesta transformação à política econômica. O governo Lula, porém, não pretende ficar só com as medidas que recompõem o bolso. Análises em processo estão mostrando que rever carga tributária é iniciativa importante e útil. Mas o que deve funcionar mesmo para esta reaproximação é a esquerda, representada pelo PT, adotar uma postura diversa da atual, democratizar-se, mesmo sem admitir que tenha criado riscos desse porte. Deve abraçar uma visão mais generosa de país, assumir o Brasil na sua diversidade, não rejeitar a pluralidade. Tolerar sem desconfiar.