Título: "Anistia fiscal para repatriar dinheiro é uma boa medida"
Autor: Cristiano Romero e Rosângela Bittar
Fonte: Valor Econômico, 12/11/2004, Política, p. A6

Entrevista Diretor da PF nega pressões do governo e diz que tem agido com independência e total apoio

Principal responsável pela nova Polícia Federal, que com suas mega-operações tem colocado políticos e corruptos na cadeia, surpreendendo o governo e o próprio PT, o delegado Paulo Lacerda considera uma boa idéia a concessão de anistia fiscal para que brasileiros repatriem dinheiro que saiu do país de forma irregular. Segundo ele, pelo menos dois países - Estados Unidos e Itália - fizeram isso de forma eficiente, sem estimular a criminalidade. O diretor geral da PF, que ouviu críticas de dirigentes do PT a ações que resultaram nas prisões de políticos e pessoas ligadas ao partido, assegura que não vem sofrendo pressão do governo para aliviar nas investigações. Ele diz que não houve excessos e lamenta transtornos. "A gente sentiu assim um 'zum-zum-zum'", diz ele, referindo-se às queixas do PT. Lacerda também não vê abusos na apreensão de documentos e equipamentos no Opportunity, na casa do banqueiro Daniel Dantas e na Kroll, empresa americana de investigação contratada pela Brasil Telecom. O diretor da PF acredita que há evidências de que a Kroll agiu ilegalmente no país. Um dos traços do estilo de Paulo Lacerda que mais causam admiração ao ministro Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, seu superior imediato, é a discrição. Outro, é a organização: há uma parede na sala mais próxima ao gabinete em que Lacerda vai marcando, no mapa, com pequenos pedaços de papel branco, o cerco aos bandidos das operações em processo. Acertou em cheio Lacerda ao privilegiar o trabalho da inteligência em lugar do uso da arma na execução das tarefas da PF. A ação de inteligência da polícia exige paciência, outra virtude destacada na personalidade do diretor-geral, que foi o responsável, em 82, pelas investigações do Caso PC. Não era para ser Paulo Lacerda, 59 anos, casado, dois filhos, o comandante da polícia no governo do PT. Muito ligado ao sindicato dos policiais, os deputados petistas da chamada bancada da PF, entre eles, Ideli Salvatti (SC), hoje líder no Senado, e Paulo Pimenta (RS), preferiam alguém do sindicato de policiais. Com a liberdade de escolha que lhe foi dada por Lula, o ministro da Justiça convidou Lacerda, que conhecera quando foi levar um cliente a depor no caso PC. Ainda na fase de transição de governo, disse-lhe: "O senhor tem carta branca para fazer um FBI". Hoje, os dois despacham todos os dias e se tratam, cerimoniosamente , de doutor Márcio e doutor Paulo. "Ele reestruturou administrativamente a polícia, fez um novo organograma, criou cargos, a PF nunca teve todo esse apoio. A polícia foi sempre muito instrumentalizada, e por falta de liderança, eles se estraçalhavam", diz Márcio Thomaz Bastos, para concluir: "Hoje, a PF tem orgulho dela mesma". Thomaz Bastos tem outra definição sobre o diretor: a indignação do Paulo Lacerda contra a desonestidade é visceral". O diretor-geral da PF é também um bom profissional da polícia, segundo os que trabalham mais próximos a ele. Interroga bem, é arguto. Sério, conservador, guarda, porém, uma certa malandragem carioca na relação com superiores e subalternos. Embora seja goiano, nascido em Anápolis, viveu tanto no Rio que mantém o chiado e o espírito brincalhão. Magro, longilíneo, vestindo um terno pied-de-poule e confortável sapatênis preto, Lacerda recebeu o Valor, na quarta-feira, para esta entrevista. Foto: Ruy Baron/Valor

Lacerda: "Jamais o ministro (José Dirceu) ou qualquer outro integrante do governo me ligou para fazer algum pedido"

Valor: O sr. concorda com a proposta de anistia fiscal a quem deseja repatriar dinheiro para o Brasil? Paulo Lacerda: A julgar pelas experiências americana e italiana, é uma boa medida. São países do Primeiro Mundo que fizeram isso, sem conseqüência nenhuma de relevo na questão da criminalidade. Repatriaram dinheiro que estava escondido em paraísos fiscais. Valor: Isso não incentiva o crime? Lacerda: Tudo vai depender de como se coloca isso. Não vai se dar aval para traficante trazer o seu dinheiro para cá. No caso de sonegação fiscal, em que o dinheiro está dormitando lá fora, esses países fizeram assim, e não tenho notícia de que tenham perdido alguma coisa. É uma questão muito polêmica, mas as autoridades fiscais e econômicas certamente estão analisando isso. Valor: O sr. acha que a Kroll, que faz investigações particulares em vários países, agiu ilegalmente no caso Opportunity? Lacerda: Embora seja um assunto ainda sob investigação, no caso concreto há evidências, sim. O caso começou com uma investigação da PF no caso Parmalat. Ali, verificamos, ao fazer monitoramentos autorizados pela Justiça, uma determinada empresa trocando informações com setores da administração pública, envolvendo investigação, inclusive, sobre uma autoridade do governo, que é o presidente do Banco do Brasil (Cássio Casseb). Isso levou a PF a propor ao Ministério Público e ao Judiciário o desmembramento daquela apuração para apurar o caso Kroll. E resultou nisso que se viu, inclusive, com um possível envolvimento do Opportunity como contratante. Valor: O sr. acha necessário regular a atividade de investigação privada no Brasil? Lacerda: Sim. É um bom momento porque se trata de uma atividade, em princípio, exclusiva do Estado. Não temos aqui uma legislação que permita investigações particulares, mas também não há uma que proíba. A lei proíbe, sim, a utilização de instrumentos, técnicas, métodos que só são possíveis mediante autorização judicial e não existe lei que permita a uma empresa privada pedir ao Judiciário autorização para investigar. Valor: Se a Kroll for condenada, ficará impedida de operar no Brasil? Lacerda: Não. A investigação para fins criminais não diz respeito à pessoa jurídica da Kroll, mas a seus dirigentes. Para questionar a existência da empresa, caberia uma ação do MP para desconstituição da personalidade jurídica. Valor: A apreensão de equipamentos do Opportunity não foi uma ação abusiva? Lacerda: Todas as vezes que atuamos em questões que envolvem sigilo bancário, a gente tem muito cuidado. A orientação é de absoluta cautela, não estamos ali querendo favorecer nem prejudicar. O que estamos verificando, e esse foi um objetivo do pedido de busca e apreensão (no Opportunity e na casa de seu dono, Daniel Dantas), é se a empresa efetivamente contratou a Kroll para fazer investigação não-autorizada pela lei brasileira. O resto é conseqüência. "Ah, foi feita uma busca na casa, ele é um grande empresário, um grande banqueiro, um homem importante..." A gente lamenta. É a mesma coisa com o (publicitário do governo e do PT) Duda Mendonça (preso numa rinha de galo). Ele não devia estar lá, não é? Se não estivesse, não teria havido nada. Valor: O sr. descarta, então, que tenham ocorrido abusos? Lacerda: O abuso pode eventualmente acontecer. Numa democracia, é assim mesmo. Cada autoridade exerce sua atribuição no âmbito da sua competência. Nesse caso, os delegados pediram até a prisão daquele empresário (Daniel Dantas). O juiz analisou, achou que não tinha razão suficiente e não autorizou. Paciência. Não se discute mais esse assunto. Mas, o juiz autorizou a busca. Valor: A PF vai insistir no pedido de prisão? Lacerda: Não, acho que não. A menos que dessas buscas todas se chegue a alguma evidência. Valor: A PF tem feito várias operações de prisão de políticos e de gente ligada ao partido do governo e de outros partidos . O sr. tem sido pressionado pelo PT ou pelo governo? Lacerda: Não. A PF tem agido com muita independência e tem tido total apoio do ministro da Justiça. Tem havido um interesse muito grande, do governo como um todo, em prestigiar a polícia. É lógico que existem lamentos eventuais que normalmente não são dirigidos a mim. Imagino que o ministro é que os ouve. Valor: Por exemplo? Lacerda: O caso do Duda, agora o do prefeito de Macapá (João Pimentel, do PT). Isso é natural. As pessoas querem saber o que está havendo. Para mim, com toda sinceridade, as coisas não chegam. Ninguém me liga. Eu despacho com o ministro todo dia e falo sobre as operações em andamento. Só conversamos depois que as operações foram deflagradas. Ele não me pergunta, me dá total liberdade, não interfere. Valor: O chefe da Casa Civil nunca ligou para o sr.? Lacerda: Nunca. E eu conheço o ministro José Dirceu desde a época em que trabalhei no caso Collor, quando ele era deputado. Jamais o ministro ou qualquer outro integrante do governo me ligou para fazer algum pedido. Valor: Nem durante o caso do prefeito de Macapá? Lacerda: Não. No dia, eu estava até em viagem com o ministro Márcio Thomaz Bastos. Eu soube até que houve demandas de pessoas querendo informações sobre a investigação, para saber quem foi preso. Procuro saber a informação correta e respondo às perguntas. É absolutamente normal. Errar, nós podemos errar. Eventualmente, tem surgido uma ou outra consideração a respeito de possíveis excessos. Valor: Falou-se em excessos, por exemplo, no caso Duda Mendonça. Lacerda: Ninguém falou comigo sobre isso. Agora, a gente sentiu assim um 'zum-zum-zum' sobre excessos. Valor: Houve excessos? Lacerda: Não. Quando a polícia atua, ela é sempre submetida ao poder competente, que é o Judiciário. Se houve e ele foi ilegal, vamos ter que tomar providências porque a própria Justiça vai nos acionar administrativa e criminalmente. Agora, existe uma lei dizendo que aquele crime (a rinha de galo) é inafiançável. Alguém pode dizer: "Ah, mas a lei não é boa". Então, temos que mudar a lei. Se ela não existisse, não teria havido aquela prisão. Valor: O PT se queixou também das reações à invasão da sede da Caixa Econômica Federal, para apreender documentos do caso Gtech. Lacerda: O que se fala daquela operação na Caixa é que teria havido excessos, um efetivo muito grande de policiais. Em razão de uma representação que o PT fez, o caso foi encaminhado à nossa Corregedoria para apurar se houve excessos. Valor: E o sr. acha que houve? Lacerda: Também nesse caso foi um assunto submetido ao Judiciário. A polícia pede autorização judicial e o MP examina, dá a sua anuência e o Judiciário concorda, então, em tese, a operação está respaldada. O que houve foi que disseram que não era para copiar determinados arquivos que foram apreendidos lá e, aí, a juíza mandou que fossem devolvidos. O delegado ponderou que isso faria perder todo o esforço do trabalho, a juíza manteve a decisão, ordenando a devolução. Os arquivos foram devolvidos. Não sou corporativista, sempre trabalhei em corregedoria. Infelizmente, tive vários colegas que foram para a rua em razão de investigações que fiz. Não tenho consciência pesada, mas também não vou aqui fazer um julgamento prévio só para agradar a alguém e dizer que o colega errou. Valor: Qual é o seu objetivo com essas operações e prisões? Lacerda: É cumprir com as determinações legais que temos. Estamos procurando fazer nosso trabalho com efetividade. Não temos aqui o foco direcionado para pessoas ou grupos. O que temos é um forte trabalho de inteligência e instrumentos legais que, no passado, não existiam. Temos uma lei de lavagem de dinheiro, outra de combate ao crime organizado. Temos autorização para a infiltração de policiais em quadrilhas. A Justiça autoriza isso. Temos o monitoramento telefônico autorizado pela Justiça. Temos a escuta-ambiente. Valor: Foi a inteligência que permitiu a identificação dos casos? Lacerda: Sim. O trabalho tradicional da polícia é apurar denúncias. Por exemplo: a denúncia de que um funcionário num aeroporto está tomando dinheiro dos passageiros. A gente diz ao denunciante que ele vai prestar um depoimento sobre a denúncia. Com isso, abre-se um inquérito policial, chamam-se as pessoas para prestar depoimento. Valor: Esse sistema é ineficiente? Lacerda: É um sistema que pode servir para cuidar daquela pessoa que está cometendo a irregularidade, mas não tem a efetividade a que eu estava me referindo. Com a inteligência, a gente deixa o sujeito lá roubando, não precisa se preocupar. Ele já roubou tanto tempo, então, o deixamos roubando mais um pouco. Começamos, então, a investigar e verificamos que alguém colocou aquele servidor público lá para fazer o serviço. Então, não é só ele. Aí, descobrimos que ele se articula com outros órgãos do aeroporto que fazem vista grossa. Depois, procuramos o beneficiário daquilo. São empresas que deixam de pagar impostos, que fazem contrabando. Daí a pouco, constatamos que há 50 pessoas envolvidas. Então, é o momento em que fazemos pedidos ao Judiciário de monitoramento, mandados de busca, eventualmente, de prisão. Valor: Quantas ações estão em curso? Lacerda: No caso dos trabalhos rotineiros de polícia naqueles termos de que falei, ou seja, os inquéritos policiais, são cem mil. Já as investigações de grande porte estão em torno de 20. Valor: Investigar políticos e administradores públicos é um foco novo? Lacerda: Sempre houve, mas não com esse enfoque de inteligência. Valor: O sr. cuidou, em 1992, do Caso PC Farias. De lá para cá, a corrupção no Brasil aumentou ou diminuiu? Lacerda: A corrupção continua, mas ela é presente em qualquer sociedade. A diferença é como se reage a ela. Pretendemos que, no Brasil, a reação seja igual à de qualquer país: a polícia combate com rigor, a Justiça pune rigorosamente e as pessoas têm medo. É algo de que a gente precisa no Brasil. Valor: O risco de corromper no país ainda é baixo? Lacerda: É. Com certeza, esse pessoal tem uma sensação de impunidade. Mas do Caso PC para cá, a gente nota que os poderes competentes têm agido com muito mais interesse. O ideal é chegar a um momento em que, em vez de 20 operações por ano, tenhamos apenas uma. Valor: O sr. concorda com a proposta para que o MP faça investigações? Lacerda: Policial é suspeito para falar sobre isso. Está na Constituição que a polícia judiciária da União é a PF. O MP tem suas atribuições e surgiu uma lei complementar que lhe deu outros poderes, mas não disse que o MP teria esse poder de investigação criminal. Se a sociedade brasileira, através do Congresso, entender que o MP tem que investigar, a exemplo de outros países, tudo bem. Aí, passaremos os cem mil inquéritos ao MP. O que temos nos batido contra é essa investigação seletiva. Aquela em que alguém escolhe quem vai ser o alvo: "Esse eu quero, esse eu não quero, esse eu arquivo, esse não". A gente não pode concordar com isso. Uma ressalva: o MP é uma instituição essencial para o país e tem atribuições altamente relevantes, e a mais destacada para mim é que eles são os donos exclusivos da ação penal. Toda investigação que a PF faz só tem êxito se o MP fizer a denúncia, transformando-a em ação penal.