Título: A controvérsia no projeto de transposição do São Francisco
Autor: Ronaldo Seroa da Motta
Fonte: Valor Econômico, 07/11/2005, Opinião, p. A10

Impacto ambiental será pequeno, mas existem problemas redistributivos

O debate sobre a transferência de água da Bacia do Rio São Francisco já ganhou até conotações místicas, embora a sua realidade terrena não tenha sido plenamente discutida. Tal como no recente plebiscito, as interpretações das relações de causalidade entre ação e resultados são confusas e quase sempre equivocadas. Os defensores do projeto, por exemplo, enfatizam que este salvará as populações menos favorecidas da região semi-árida do Nordeste (localizadas nos Estados do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco) das agruras e tragédias da seca e que, com a expansão das atividades de irrigação, estariam criadas as bases para o desenvolvimento e, portanto, para a redenção econômica dessas comunidades. A oposição ao projeto se baseia em suas conseqüências ambientais desastrosas, em particular aos efeitos na escassez da água tanto para os atuais usuários como para usos futuros. Para quem quiser conhecer melhor o projeto, indica-se o portal da Agência Nacional de Águas (ANA), onde a leitura dos inúmeros documentos descritivos e analíticos indicará que as duas posições acima, embora antagônicas, não são verdadeiras. O projeto, primeiro, visa ao abastecimento urbano, isto é, disponibilizar água para uso humano. As outorgas de uso de água concedidas pela ANA são restritas ao bombeamento contínuo de 19,4 m³/s em 2010 e de 21,8 m³/s em 2015 e, por conta de perdas normais na distribuição, apenas 80% destas serão disponibilizadas aos usuários. Dessa transferência, apenas 7 m³/s serão destinados à irrigação. Maiores volumes de água só poderão ser transferidos caso na época se demonstre que outros usos, em particular a geração hidroelétrica, não estejam sendo prejudicados. Quando se estimaram os benefícios sociais do projeto (valor da água para uso humano, industrial e agrícola mais redução de gastos públicos em saúde e ações emergenciais da seca), os benefícios urbanos com abastecimento de água somaram 85% do valor total. Na verdade, os benefícios da irrigação decrescem o total, pois apresentam retornos inferiores aos benefícios urbanos. A taxa de retorno do projeto inclusive não é alta, estando em torno de 17% ao ano - e aí sim caberia o questionamento, pois é um baixo nível de retorno para investimentos em saneamento e inferior aos obtidos com projetos sociais na área de educação e saúde, que representariam usos alternativos no Nordeste para os R$ 4,5 bilhões dedicados à transposição. A preocupação ambiental não se justifica por razão hídrica. A vazão de transferência outorgada é insignificante frente ao volume total da Bacia do São Francisco. Parece assim muito estranho o argumento de que essa água deveria ser preservada para o futuro, quando será maior a escassez. A água de um rio é um fluxo que, se não é utilizado hoje, não se guarda para o futuro e acaba no mar. O que parece mais correto afirmar é que, no futuro, outros usos poderão não ser outorgados, mas isso não pode justificar o sacrifício de gerações presentes! Num futuro de crise total e escassez absoluta de água, toda a alocação de usos será revista, seja por iniciativas políticas ou por forças de mercado.

Subsídio para grandes centros urbanos é um populismo tarifário que favorece ricos e estimula uso ineficiente da água

Se em termos hídricos o projeto é inofensivo, os impactos da obra em certos vilarejos e para certas comunidades, tal como aconteceria em qualquer obra de infra-estrutura, podem ser bastante significativos. Os estudos apontam inúmeras medidas e ações mitigadoras. A estas é que o debate ambiental deveria estar voltado. Do ponto de vista fiscal, o projeto põe todas as despesas de investimentos na conta do contribuinte, pois aos usuários serão somente repassados os custos de operação. Essa é uma decisão questionável. O primeiro ponto é que o custo de operação estimado, em torno de R$ 0,17 m³, é mais que o dobro dos níveis hoje praticados em outros projetos de irrigação no Brasil, que já não apresentam bom desempenho financeiro, com alta inadimplência. Provavelmente, à luz das experiências anteriores, as atividades a serem subsidiadas terão de ser aquelas com alto valor agregado e voltadas para exportação. Ou seja, a água irrigada não vai chegar diretamente aos mais pobres. Isso não desqualifica a importância do projeto e o seu efeito multiplicador de renda, mas questiona a razão de se criarem subsídios para esses tipos de atividades. A mesma questão distributiva aparece quando se sabe que 60% da vazão bombeada será para uso humano, com predominância nos grandes centros, e que nestes os maiores beneficiários em termos de volume de uso deverão ser as classes de renda mais alta. Utilizando uma taxa de desconto de 10% ao ano, a inclusão dos custos dos investimentos na cobrança da água transferida elevaria o custo total para um valor em torno de R$ 1,4 m³, muito próximo à tarifa média de água tratada atualmente praticada no país e, portanto, viável de absorção pelas populações urbanas, descartando com isso a necessidade de manutenção dos altos subsídios propostos no projeto. Este nível de subsídios não só cria outra oportunidade para a prática nefasta de populismo tarifário, como estimula usos ineficientes da água aumentando ainda mais a sua escassez. Em suma, como podemos observar, o debate da transposição do Rio São Francisco está mal focado. Ao contrário do imaginário vigente, é um projeto urbano com baixo impacto ambiental. O seu questionamento deveria estar mais centrado no seu esquema de subsídios e nas suas conseqüências distributivas e de eficiência no uso dos recursos hídricos tão valiosos para a região.