Título: As causas culturais e estruturais da corrupção
Autor: Miguel Reale Júnior
Fonte: Valor Econômico, 16/09/2005, Opinião, p. A14

Supremacia do interesse particular sobre o geral é ostensiva na formação brasileira

O liberal-escravismo deixou profundas marcas na forma de ser da sociedade brasileira: foi uma estranha comunhão da defesa intransigente das liberdades políticas, pelas lideranças do império, com a concomitante e arraigada justificação "patriótica" da escravidão. Foi uma hipocrisia que deixou seqüelas. A nossa história social é palmilhada de contradições. Assim, o rigor do trabalho e a disciplina da escravidão, marcada pelos maus tratos, misturava-se com a proximidade que, por vezes, temperava a dominação senhor-escravo, especialmente com relação ao escravo doméstico, com o qual se estabelecia uma relação pessoal. Da mesma forma, a dominação e o enclausuramento da mulher eram coetâneos ao seu endeusamento romântico. A alegria expansiva de nossa gente de um lado, graças à bonomia dos negros, acha contraste no ensimesmamento e retraimento do caboclo. O nomadismo do caipira e a sofreguidão do uso imediato da terra, lançando mão da coivara - isto é, da queima e esgotamento do solo -, confrontam-se com estabilidade do engenho e da "casa grande". A conciliação sempre dividiu espaço com a violência. Se Gilberto Freyre aponta como elemento definidor da unidade nacional o sistema patriarcal de nossa sociedade, por outro lado cabe ponderar que a multiplicidade e conjugação de formas de ser e de sentir eram possíveis, reunindo-se o diverso e o contraditório sob um mesmo teto, graças, a meu ver, a um denominador comum, um traço uniforme: a confusão e mistura entre o público e o privado, presente até os dias de hoje, e que apazigua conflitos no guarda-chuva do Estado agasalhador. Muitos, com astúcia e esperança, não se rebelam, na expectativa de sua hora. A supremacia do interesse particular sobre o geral é para Gilberto Freyre ostensiva na formação brasileira. Os poucos que dirigem o país não o fazem em favor da maioria. No Estado patrimonialista, "a minoria exerce o governo em nome próprio", e o exercita não em prol da nação, mas segundo o interesse particular, como coisa privada. Assim, as diferenças no plano das idéias entre os partidos sempre foram inconsistentes, pois tudo se reduzia "a um loteamento de cargos, influências e honrarias". Todas as contradições, como as acima apontadas, próprias de nossa sociedade instável e desigual, sempre foram superadas na preservação da forma como os detentores do poder entrelaçam o público e o privado. Por isso, falava Sérgio Buarque de Holanda em "cordialidade" como traço essencial da brasilidade, "cordialidade" que significa tratar a coisa pública com os critérios do interesse particular. Desde a nomeação de um delegado de polícia até a eleição de um senador no Império ou de um presidente na 1ª República eram ditadas pela prevalência do interesse privado sobre o geral. Dos papéis de Rui Barbosa, em sua passagem pelo Ministério da Fazenda, no primeiro governo republicano, 50% eram de cartas pedindo favores, emprego, proteção. E os pedidos eram encaminhados por Benjamim Constant, Campos Salles, o próprio presidente Deodoro da Fonseca e sua mulher, Dona Mariana. Prevalecia e prevalece o clientelismo: na solução das questões de governo jamais se desconhecia - como ocorre ainda hoje - a necessidade de satisfazer o clã político. Hoje, o PT no governo exerce o poder introduzindo de forma ampla o aparelho partidário no aparelho de Estado. O clientelismo se dá em favor grande família partidária.

Um sistema eleitoral desagregador como o proporcional aberto não é a causa da corrupção, mas é um grande facilitador

Ausente a dimensão do interesse geral, a superação dos eventuais conflitos pode ser facilmente alcançada pela cordialidade, a conciliação, desde que se atenda à satisfação do maior número de apaniguados, em um acordo tácito entre os "donos do poder", por via de cargos ou vantagens, mensais ou esporádicas. O privado e o público sempre se misturam, e logo o público vem a ser utilizado a serviço do privado. A esses aspectos culturais acima apontados, soma-se mais um traço característico de nosso povo, qual seja, um intenso individualismo, sendo pequena a taxa de coesão social, de espírito comunitário propiciador de solidariedade em torno de interesses coletivos. A falta de senso associativo de nossa individualista sociedade, desde os primórdios mercantilista e extrativista, não é de modo algum compensada pela representação partidária em regime presidencialista, caracterizada por baixa participação da população na formulação das políticas públicas, em um sistema eleitoral desagregador como o proporcional aberto, unipessoal. Esse sistema político não é por si só causa da corrupção, mas sim seu grande facilitador. A corrupção nos diversos níveis da administração pública acentua a confusão entre o público e o privado, mancomunados servidores e vencedores de licitações. Nem mesmo o impeachment de Collor ou a CPI do Orçamento, que decapitou lideranças políticas de peso, amedrontaram a ganância de apropriação do dinheiro público feita sempre com a escusa de engordar caixas eleitorais. E agora, o mais grave: a ocupação do poder por via do sistema contínuo da compra de adesão parlamentar com dinheiro vivo, o que gangrena o núcleo do funcionamento da democracia. Assim, um ponto possível de ser atacado de imediato é o da modificação do sistema político-eleitoral, facilitador da corrupção, para se promover mudanças, com a adoção, por exemplo, do voto distrital misto, da fidelidade partidária e a redução de gastos de campanha. Ao se exigir a reforma política não se está, é evidente às pessoas de boa fé, escamoteando a questão cultural e os vícios pessoais dos corruptores e corrompidos. Por isso, propugna-se por punições justas e por reforma política. É a forma de sair da letargia que domina a sociedade perplexa. O indesculpável, nesta hora, para os que pretendem enfrentar os males do nosso país, é o imobilismo. Daí o movimento de Refundação Republicana, em cujo site (www.refundacaorepublicana.org.br) está estampado o manifesto "Da indignação à ação", exigindo-se apurações justas e exaustivas, bem como mudanças no sistema político. Ainda é hora do agir sob indignação.