Título: Há bem que vem para o mal
Autor: Gustavo Loyola
Fonte: Valor Econômico, 25/07/2005, Opinião, p. A11

A Medida Provisória nº 252, apelidada de "MP do Bem", é um exemplo característico da confusão que impera nas finanças públicas brasileiras. Para mitigar o impacto de um sistema tributário irracional, o governo opta, mas uma vez, pelo caminho da escolha de alguns setores e mercados para insulá-los dos efeitos da irracionalidade tributária. O resultado é que a legislação se torna crescentemente um "queijo suíço", criando uma pletora de incentivos para os contribuintes se envolverem em "engenharias tributárias" que, no mínimo, resultam na elevação dos custos de transação no Brasil. Essa "desistematização" das normas tributárias, ademais, conduz a uma espécie de "lei do mais forte", em que setores com maior poder de "lobby" acabam escapando das garras do Leão, por meio de "bondades" seletivas. Não é por outra razão que o relator no Congresso Nacional da citada MP está às voltas com dezenas de emendas propondo a extensão das "bondades" a setores e mercados não contemplados em sua redação original. Aliás, quem pode dizer, com segurança, que os contribuintes que ficaram de fora da "MP do Bem" são menos merecedores de "bondades"? Segundo a imprensa, há uma proposta de emenda pra zerar a alíquota de PIS e Cofins para "queijos tipo mozarela, minas, prato, queijo de coalho, ricota e requeijão". Seria de se perguntar por que não incluir também na isenção os saborosos brie, rochefort, camenbert e gorgonzola. Não se trata de ignorar o que há de positivo na "MP do Bem". Na maioria dos casos, está-se diante de uma típica situação de "second best", sendo melhor a edição da citada MP do que a alternativa de não se fazer nada. A crítica é mais em relação à falta de ações para melhorar "globalmente" o sistema tributário brasileiro. "Incentivo" é uma palavra-chave em Economia. Embora seja um conceito de fácil percepção intuitiva, freqüentemente os governos e os políticos se esquecem que os agentes econômicos reagem ao conjunto de incentivos com o qual se defrontam no seu dia-a-dia. A imprensa, por exemplo, noticiou na semana passada que o governo paulista estaria autuando empresas de diversos setores que, aconselhadas por consultorias tributárias, se tornaram "exportadoras" de soja para se beneficiarem dos créditos de ICMS. Essa engenharia tributária era de se esperar, uma vez que o fosso entre a tributação das vendas no mercado doméstico e para o exterior criou um incentivo econômico para os contribuintes "exportarem". Por outro lado, analisando-se a "MP do Bem", é fácil detectar os incentivos perversos que algumas propostas do "bem" podem trazer para o funcionamento de certos mercados. Tome-se o caso da isenção de PIS/PASEP e Cofins na venda a consumidores finais de computadores cujo preço fique abaixo de R$ 2,5 mil. Tipicamente esse limite incentiva a venda associada de computadores montados com os componentes básicos e de elementos isolados para serem agregados a esse "esqueleto". Essa ressurreição canhestra da idéia do "Fusca pé-de-boi" parece difícil de entender, até porque totalmente inadequada como estímulo ao barateamento do preço dos computadores.

"Desistematização" de normas tributárias conduz a uma lei do mais forte, em que setores escapam do Leão por meio de bondades seletivas

Um outro exemplo é o tal "Regime Especial de Aquisição de Bens de Capital", também criado pela "MP do Bem", e que suspende a incidência do Cofins na importação de máquinas e equipamentos, desde que a empresa tenha 80% de sua receita obtida com exportações. Ora, eis aí mais um tipo de incentivo que, além de discricionário, pode levar a "engenharias tributárias" para a delícia dos consultores do ramo. Mais racional seria logo isentar todas as importações de máquinas e equipamentos. Vale ressaltar que a opção por saídas casuísticas em detrimento de soluções globais ou horizontais não se constitui em invenção recente e permeia grande parte das políticas públicas. Isso mostra que o bom-senso de certos conceitos econômicos não tem sido suficiente para convencer as autoridades governamentais de diferentes épocas. Também indica que as lições do passado raramente são aproveitadas. De forma caricatural, podemos dizer que as políticas públicas brasileiras têm uma particular predileção pela construção de "estufas econômicas", visando permitir a sobrevivência de certos mercados e agentes, em detrimento de ações que tenham por objetivo melhorar o meio ambiente econômico para todos. Isso vale tanto para o lado da arrecadação, quanto para o lado das despesas públicas. Com isso, há evidente prejuízo para o processo de construção institucional do país. Os que se encontram dentro das "estufas" têm mais incentivos para se manterem abrigados nesses ambientes amenos do que para brigarem pela melhora do ar que todos respiram. Instala-se, assim, um círculo vicioso, em que as autoridades políticas não se sentem pressionadas pela sociedade para realizarem as reformas institucionais, mas são constantemente instadas a ampliarem e construírem novas "estufas". Adicionalmente, como antes mencionado, a lógica das "estufas" reforça constantemente o poder das minorias organizadas em relação à maioria desorganizada. Esse fenômeno, amplamente estudado em Ciência Política, é comum até nas democracias mais avançadas, porém parece ter adquirido no Brasil uma dinâmica própria incentivada pela incapacidade de os governos formularem e executarem políticas de longo prazo. A "MP do Bem", por exemplo, é uma solução de curto prazo e "fácil" (não exige emenda à Constituição, mas uma simples MP), por isso preferível ao longo e penoso caminho da reforma fiscal. Em suma, há bem que vem para o mal. É o caso da MP nº 252. Paradoxalmente, nesse caso teria sido preferível que o mal tivesse vindo para o bem. Ou seja, somente com os males do fechamento da fábrica de "estufas" é que a sociedade brasileira, como um todo, terá o bem da melhora do sistema tributário e da qualidade da despesa pública.