Título: De frente para o conflito
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 14/03/2010, Mundo, p. 20

Lula desembarca em Israel para visita inédita, que coincide com escalada de confrontos com os palestinos. Colonização judaica deve merecer críticas ¿de amigo para amigo¿

Se a ideia era olhar de perto para as disputas entre israelenses e palestinos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chega ao Oriente Médio na hora certa para mostrar a própria cara e dizer em que o Brasil pode contribuir para desatar um nó que desafia há mais de meio século a diplomacia mundial. Lula é aguardado no fim da tarde de hoje em Israel, onde amanhã começa a puxada agenda oficial (veja quadro) de uma viagem que o levará também ao território da Cisjordânia, sob jurisdição da Autoridade Palestina (AP) e à Jordânia, peça-chave em qualquer tentativa de paz, pelo trânsito de que desfruta entre várias partes na vizinhança.

A primeira visita oficial de um presidente brasileiro ao Estado de Israel, fundado em 1948, coincide com um período de turbulências. Desde a última sexta-feira, as passagens entre a Cisjordânia e o território israelense estão fechadas, como precaução contra manifestações dos palestinos. Mesmo assim, houve confrontos entre manifestantes e as tropas não muito longe de Jerusalém, no posto de fronteira de Kalandiya. No início da semana, o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou planos para construir 1.600 moradias para famílias judias no setor oriental (árabe) da cidade sagrada ¿ o mesmo que a AP reivindica como capital de um Estado palestino.

A medida, anunciada na véspera do desembarque do vice-presidente americano, Joseph Biden, causou atrito entre os dois aliados e valeu a Netanyahu censuras públicas e explícitas, inclusive por parte da secretária de Estado Hillary Clinton. Ela e Biden deram o tom para a intervenção da diplomacia brasileira. ¿Amigos também fazem críticas aos amigos¿, disse ao Correio um diplomata envolvido diretamente na política do Itamaraty para o Oriente Médio, praticamente repetindo as palavras do vice de Barack Obama. A necessidade de pressionar Netanyahu para que congele a colonização judaica na Cisjordânia e se engaje efetivamente na conclusão do processo de paz, culminando com a criação da Palestina independente, esteve à mesa durante a visita da secretária de Estado a Brasília, na semana anterior.

Guinada

O Itamaraty não faz segredo da opção do governo Lula por uma inflexão na política externa, percebida no cenário internacional como claramente mais pró-árabe. ¿Mas nossa política não é de afastamento em relação a Israel¿, insiste o diplomata. ¿O Brasil não se aproxima de uns em detrimento de outros¿, argumenta, em resposta a uma queixa que fontes israelenses deixam escapar a intervalos regulares. Em particular, causaram algum desconforto em Israel os termos duros com que o governo brasileiro condenou como ¿desproporcional¿ sua ação militar em dois episódios recentes: a guerra contra o partido xiita libanês Hezbollah, em 2006, e a ofensiva de um ano atrás contra o território palestino de Gaza, controlado pelo Hamas.

É justamente para sinalizar essa percepção de que os palestinos têm direito a seu Estado independente, ¿com capital em Jerusalém Oriental¿, que o presidente Lula vai pernoitar em Belém, de segunda para terça-feira. A cidade fica a menos de meia hora de Jerusalém, e no caminho estão alguns dos assentamentos judaicos que, na visão da AP, impedem a retomada do processo de paz. Do hotel onde ficará hospedado, o visitante terá vista para a Praça da Manjedoura e a Basílica da Natividade, construída sobre o local onde Jesus nasceu, segundo a tradição religiosa. Mas verá também o muro erguido nos últimos anos por Israel ¿ a despeito de protestos e condenações internacionais ¿ para confinar os palestinos na Cisjordânia.

AO PÉ DO MURO Civis palestinos desafiaram ontem os soldados israelenses no posto de fronteira de Kalandiya, uma das passagens através do muro que separa Israel da Cisjordânia. Os manifestantes protestavam contra o fechamento da fronteira, que os impede de visitar Jerusalém e orar na Mesquita de Al-Aqsa, terceiro santuário mais venerado pelos muçulmanos. ¿Jerusalém é árabe, nossa capital eterna¿, gritavam os palestinos, revoltados também com o anúncio de mais colônias judaicas no setor oriental (árabe) da cidade. O confronto deixou seis feridos, nenhum deles com gravidade.

Diplomacia na gangorra

Criação de Israel Coube ao então chanceler brasileiro, Oswaldo Aranha, presidir a sessão das Nações Unidas na qual foi aceito o recém-fundado Estado de Israel, em 1948. Nos anos que se seguiram, e mais acentuadamente após o golpe militar de 1964, o alinhamento da diplomacia brasileira aos EUA se expressou no apoio a Israel em seu conflito com os vizinhos árabes.

Crise do petróleo O boicote dos árabes ao fornecimento de petróleo para os aliados de Israel, após a Guerra do Yom Kipur (1973) coincidiu com a troca de comando no regime militar brasileiro. O general Ernesto Geisel, que assumiu a Presidência em 1974, deu carta branca a seu chanceler, Azeredo da Silveira, para uma aproximação ao mundo árabe, como parte de uma revisão do ¿alinhamento automático¿ com Washington.

Governo Lula Embora o país tenha representação oficial da Organização para Libertação da Palestina (OLP) desde os anos 1980, foi com Lula presidente que a inflexão em direção ao mundo árabe se aprofundou. O presidente visitou a região no fim do primeiro ano de mandato e lançou a ideia de uma cúpula entre os países árabes e sul-americanos, concretizada em 2005, em Brasília (foto).

Israel x Líbano A breve guerra de 40 dias entre Israel e o braço armado do partido xiita libanês Hezbollah, em meados de 2006, foi outro ponto de inflexão. Os pronunciamentos oficiais do governo brasileiro subiram progressivamente de tom, até condenar explicitamente a ¿resposta desproporcional¿ de Israel, assim qualificada pela destruição material (foto) e pela morte de civis.

Gaza A tendência acentuou-se durante o conflito entre Israel e o governo do movimento Hamas no território palestino da Faixa de Gaza, na virada de 2008 para 2009. Embora condenando também os extremistas islâmicos, inclusive pelo desrespeito à população civil, o governo Lula uma vez mais ressaltou a ¿desproporção¿ dos ataques israelenses. Desde então, tem sido reiterada a crítica do Itamaraty ao bloqueio imposto por Israel a Gaza.

Aproximação ao Irã Outra inflexão marcante da diplomacia brasileira diz respeito à República Islâmica e a seu programa nuclear. A despeito das gestões dos EUA e de seus aliados europeus, e do desagrado manifesto de Israel, Lula se mantém avesso ao reforço das sanções contra Teerã. Além disso, recebeu no ano passado o colega Mahmud Ahmadinejad, ainda que as notas oficiais tenham reprovado o presidente iraniano por colocar em questão o Holocausto. A visita de Ahmadinejad será retribuída em maio, quando se espera que Brasil e Irã aprofundem a cooperação e as relações econômico-comerciais.

Agenda corrida

Amanhã Lula será recebido em Israel pelo presidente Shimon Peres, pelo premiê Benjamin Netanyahu e pelo presidente da Knesset (Parlamento), Reuven Rivlin. Também assistirá a um seminário empresarial e terá encontro com representantes da sociedade civil israelense e palestina.

Terça-feira O presidente visitará o Memorial do Holocausto e plantará uma árvore no Bosque de Jerusalém. À tarde, viajará para Belém e se reunirá com o presidente da Autoridade Palestina (AP), Mahmud Abbas, e o premiê Salam Fayyad. Também visitará a Basílica da Natividade.

Quarta-feira Em Ramallah, inaugurará a Rua Brasil, perto da sede da AP. Depositará flores no Mausoléu de Yasser Arafat e assinará acordos de cooperação em educação, cultura, saúde, esportes e turismo. À tarde, partirá para a Jordânia, onde vai jantar com o rei Abdullah II.

Quinta-feira Lula fará visita de cortesia ao presidente do Senado, Taher Masri, e se encontrará com o premiê Samir Rifai. Também participará de um encontro com empresários dos dois países.