Título: Alteração na lei pode preservar sonegador
Autor: Cristine Prestes
Fonte: Valor Econômico, 28/03/2005, Legislação & Tributos, p. E1

No dia 4 de abril, os órgãos que compõem o Gabinete de Gestão Integrada de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro - que inclui representantes do governo federal, do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, entre outros - concluem as discussões em torno do anteprojeto da nova Lei de Lavagem de Dinheiro para encaminhá-lo à Casa Civil e, posteriormente, ao Congresso Nacional. E, ao que tudo indica, as alterações preservarão a linha adotada na legislação brasileira no que se refere aos crimes tributários: o uso da lei penal como forma de pressão do fisco para o pagamento do tributo. O anteprojeto que altera a Lei de Lavagem - a Lei nº 9.613, de 1998 - tem entre suas principais mudanças em estudo a ampliação do rol de crimes antecedentes à lavagem de dinheiro. Pela legislação atual, lavar dinheiro significa ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização e propriedade de bens e valores provenientes de oito tipos de crime - tráfico de drogas, terrorismo, contrabando, extorsão mediante seqüestro, crime contra a administração pública, contra o sistema financeiro nacional, praticado por organização criminosa e contra a administração pública estrangeira. Mas a idéia do anteprojeto é aumentar o número de possibilidades de punição da lavagem de dinheiro, entendendo-a para outros tipos de crime - inclusive o crime tributário. Embora a proposta deva manter o crime tributário como antecedente da lavagem de dinheiro, estão em estudo mecanismos que preservem a lei como instrumento de pressão do fisco e mantenham o caráter protecionista da legislação brasileira no que se refere à sonegação fiscal. Um deles, já incluído na minuta, é o que extingue a punibilidade do crime de lavagem quando for extinta a punibilidade do crime tributário, desde que o autor dos dois crimes seja o mesmo. Mas há outras propostas. Como a criação de um dispositivo específico que estabeleça que se a lavagem do dinheiro fruto da sonegação fiscal for feita pelo próprio sonegador, não será considerada lavagem. Outra idéia é simplesmente excluir do rol de antecedentes o crime tributário. Nenhuma, no entanto, é definitiva. Ainda não há consenso no grupo sobre o tratamento a ser dado na alteração da Lei de Lavagem ao crime tributário, que representa uma das maiores divergências entre seus participantes. "O grupo é sensível a isso, e o máximo que pode acontecer é o crime tributário entrar no rol de antecedentes, mas com mecanismos de proteção", garante Antenor Madruga, diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça e participante do gabinete que estuda as mudanças na lei. O crime contra a ordem tributária é o ponto nevrálgico das discussões do anteprojeto porque, no Brasil, historicamente ele tem um tratamento diferenciado, tanto em termos de legislação quanto de jurisprudência. Em 1995, a Lei nº 9.249 estabeleceu que o pagamento integral do tributo devido antes do recebimento da denúncia pelo juiz extinguia a punibilidade do crime. O mecanismo foi novamente utilizado em 2003 na Lei nº 10.684, que estendeu a extinção para o pagamento do tributo a qualquer tempo, mesmo após a denúncia. Na prática, a ótica protecionista também se aplica. Quando condenados pela Justiça, os autores de crimes tributários costumam ter suas penas de reclusão substituídas por penas alternativas, desde a edição da Lei de Penas Alternativas, em 1998. Além disso, os programas de recuperação fiscal - Refis - que permitem o parcelamento dos tributos em atraso suspendem o processo penal quando da adesão da empresa. "O Brasil é um país que tem tendência a proteger o sonegador, prevendo um tratamento absolutamente diferenciado a ele", afirma o advogado criminalista Celso Vilardi, que está desenvolvendo uma tese de mestrado sobre os crimes antecedentes da lavagem de dinheiro. Segundo Vilardi, a própria extinção da punibilidade é uma exceção do direito penal brasileiro, já que o mecanismo normal é a redução da pena. Para o advogado Antônio Sérgio de Moraes Pitombo, criminalista que também estuda a lavagem de dinheiro, a previsão da extinção de punibilidade para o crime tributário é a prova de que a sonegação, no direito brasileiro, não é considerada um crime grave. "O crime tributário é um ponto controverso porque estamos mexendo com uma questão puramente econômica e com um agente criminoso necessariamente organizado, com grandes interesses e muita informação e advogados bem instrumentalizados", diz o subprocurador do Ministério Público Federal Francisco Dias Teixeira, participante do grupo que estuda a nova lei. De acordo com Antonio Gustavo Rodrigues, presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), todo o arcabouço jurídico em torno do crime tributário que se criou na legislação brasileira pode cair por terra se a nova Lei de Lavagem de Dinheiro não seguir o mesmo rumo. Isso porque, mesmo que ela continue em vigor, em casos em que houver lavagem de dinheiro o autor do crime de sonegação estará sujeito à pena de lavagem, que não pode ser extinta e nem substituída por penas alternativas. "Isso criaria uma dificuldade, pois retiraria do crime tributário o intuito arrecadatório", diz Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e também participante do grupo que discute a nova lei. "A abertura do rol de antecedentes da lavagem de dinheiro vai gerar uma grande controvérsia", afirma. A discussão em torno do tema não é restrita ao Brasil. Segundo o advogado Celso Vilardi, o problema hoje é discutido mundialmente. Países como Uruguai e Suíça, paraísos fiscais que são destino de recursos objeto de sonegação fiscal de empresas estrangeiras, não aceitam o crime tributário como antecedente da lavagem, diz. Já a Itália o coloca como passível de punição. A última minuta do anteprojeto de nova Lei de Lavagem de Dinheiro continha uma única restrição: que seria punido também por lavagem de dinheiro qualquer crime com pena privativa de liberdade superior a dois anos que culminasse na ocultação de bens e valores provenientes deles. O critério é o mesmo utilizado para os juizados especiais criminais, que julgam crimes de menor potencial ofensivo com penas menores que dois anos de reclusão. Mas, com base na minuta, juízes titulares das varas especializadas no julgamento de casos de lavagem de dinheiro - que também fazem parte do gabinete que estuda a alteração na Lei de Lavagem -apresentaram outra proposta: que ela seja ainda mais abrangente, permitindo que qualquer infração penal possa ser passível de julgamento também por lavagem de dinheiro, independentemente da gravidade ou da pena prevista.