Título: Ásia sofre mais devido à sua dependência do comércio
Autor: Pilling , David
Fonte: Valor Econômico, 30/03/2009, Especial, p. A16

Escolha um número, qualquer um. Para a Ásia, todos são provavelmente ruins. A azarada Lau Wong-fat, designada, por Hong Kong para selecionar um palitinho da sorte em nome da cidade durante as recentes comemorações do Ano Novo Lunar, tirou o número 27, considerado pelos presentes ao evento como o mais aziago possível para o ano. Um adivinho no templo Che Kung, envolto em nuvens de incenso e consultando os céus para absorver inspiração, declarou que o resultado significa que Hong Kong não conseguirá se isolar da turbulência econômica mundial.

Não seria necessário nenhum mestre divinatório para dizer isso. Não apenas Hong Kong - que como cidade portuária e centro financeiro depende de sua abertura ao comércio mundial, agora em rápido declínio -, como também a Ásia inteira está em dificuldades. Em toda a região, especialmente no sudeste e nordeste asiáticos fortemente industriais, estatísticos governamentais vêm, eles mesmos, divulgando números infaustos.

Um dos piores veio do Japão, cujos bancos conservadores não tinham adquirido tantos ativos tóxicos, o que havia deixado a economia aparentemente menos ameaçada pela recessão. Essa ilusão acabou quando as estatísticas mostraram que a economia registrou uma contração de 12,7% no quarto trimestre. As exportações caíram chocantes 35% em dezembro, em comparação com o ano anterior, porque a demanda por carros, produtos eletrônicos e equipamentos de precisão despencou no mundo inteiro.

Isso se seguiu a uma série de mais dados negativos, entre eles queda de quase 10%, mês sobre mês, na produção industrial, forte aumento do desemprego, para 4,4% e uma queda na inflação, o que sugere que uma volta à deflação está está muito próxima. Tão forte tem sido a deterioração que o Fundo Monetário Internacional (FMI) previu uma contração de 2,6% do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, sugerindo que o Japão poderá sofrer ainda mais do que os EUA, origem da crise de crédito.

Cingapura, Coreia do Sul e Taiwan disputam com o Japão a primazia de desaquecimento econômico mais acelerado. Cingapura, que funciona como indicador de atividade de comércio mundial devido à sua economia aberta, poderá contrair até 5% neste ano, no que poderá ser a mais profunda recessão desde o nascimento da cidade-Estado, em 1965. O FMI está prevendo uma contração de 4% na Coreia do Sul, embora o governo em Seul esteja bem mais otimista.

E sequer a China, uma economia que deverá crescer respeitáveis de 6% a 8% neste ano, está imune a estatísticas assustadoras. Na semana passada, o governo estimou que não menos que 20 milhões de trabalhadores migrantes rurais, que perfazem 15% do total, tinham perdido seus empregos depois que fábricas voltadas para exportações fecharam seu portões. Os céus azuis em Hong Kong são testemunho do fechamento de indústrias poluidoras que funcionam do outro lado da fronteira, no delta do Rio da Pérola.

A velocidade e a ferocidade da queda na atividade econômica asiática surpreenderam até mesmo os pessimistas. "Embora a Ásia não tenha sido o epicentro da crise, foi duramente atingida", disse Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do FMI. O Fundo espera um crescimento regional de apenas 2,7%, ou seja, uma fração dos 9% alcançados em 2007 e um ponto percentual mais baixo até mesmo do que durante sua própria crise financeira uma década atrás. Essa crise foi em larga medida autoinfligida, resultado de uma dependência excessiva de erráticos fluxos de financiamento estrangeiro. Desta vez, as contas com o exterior na região estão em melhor forma e a crise começou em outro lugar. Então, por que é que a Ásia parece a caminho de um tombo ainda mais doloroso?

Numa palavra: comércio. Como diz Strauss-Kahn, a Ásia está mais intimamente ligada à economia mundial do que uma década atrás. A região cresceu espetacularmente em cima de exportações, mas o outro lado da moeda é que isso agora a deixa mais vulnerável. À época da crise anterior, as exportações respondiam por 37% da produção da Ásia em desenvolvimento, segundo economistas do Morgan Stanley. Uma década mais tarde, o percentual subiu para 47%, à medida que os governos buscaram acumular grandes reservas em moeda estrangeira como proteção contra os choques em suas contas correntes que anteriormente os tinham derrubado. A consequência foi que a Ásia trocou sua dependência de financiamento externo por dependência de demanda externa.

Isso é enormemente importante para um mundo que, até apenas alguns meses atrás, tinha assumido que o impacto da crise no Ocidente de alguma maneira passaria ao largo da Ásia.

Um corolário dessa premissa errônea foi que a China - e em menor medida o Japão e a Índia - poderia de alguma forma arcar com o ônus econômico mundial, ao substituir a demanda americana e europeia em rápida desaparecimento. Essa esperança ignorou o fato de que, com exceção do Japão, nenhuma economia asiática ainda possui, sequer de longe, a escala necessária para desempenhar tal papel. Porém, o que é mais importante, a esperança ignorou quão consolidado é o modelo asiático dependente de exportações, e o grau de dificuldade para converter suas economias em motores alimentados por demanda interna. Como diz N.K. Singh, um membro do Parlamento indiano: "Não é questão de simplesmente estalar os dedos, e pronto".

De fato, não é. Cem Karacadag, do Credit Suisse, calcula que as exportações, excluídos seus conteúdos importados, respondem por até 66% do PIB de Hong Kong e Cingapura, quase metade da produção da Malásia e da Tailândia, e 33% da Coreia do Sul e de Taiwan. Ele diz que o impacto inicial de uma queda de 10% nas exportações sem levar em conta efeitos secundários - inclusive inevitáveis cortes de postos de trabalho e deterioração do otimismo do consumidor - eliminaria 2 pontos percentuais do crescimento de Coreia do Sul e Taiwan, e deixaria Hong Kong e Cingapura, cada uma, 7 pontos percentuais piores.

Jong Wha-Lee, do Banco de Desenvolvimento Asiático (BDA), diz que um forte aumento, nos últimas anos, do comércio intrarregional dissimula o fato de que 60% da demanda final por mercadorias asiáticas têm origem em países desenvolvidos. Ao mesmo tempo em que consumidores ocidentais adiam suas compras, muito comércio intra-asiático - grande parte de componentes, insumos e equipamentos de capital - também evaporou. Como se isso não fosse suficientemente ruim, economias dependentes de turismo estão sofrendo o impacto adicional da queda do número de visitantes. O turismo contribui com 5% a 7% do PIB em Hong Kong, Malásia, Cingapura e Tailândia. Além disso, se o emprego de trabalhadores estrangeiros no Golfo Pérsico e em outras áreas cair tão rápido quanto esperado, os países dependentes de remessas de dinheiro - como as Filipinas e regiões da Índia - também sofrerão um abalo.

No outro extremo da escala de desenvolvimento, o Japão está vendo fechamentos de fábricas, à medida que companhias entram no vermelho. A Toyota, principal fabricante de automóveis do mundo, advertiu, em meio a um colapso das vendas nos EUA, que registrará um prejuízo operacional de 450 bilhões de ienes (US$ 5 bilhões) neste ano, seu primeiro desde 1950. Apenas alguns meses atrás, o país previa um lucro de 600 bilhões de ienes.

Na China, o desaquecimento contrasta com o aceleradíssimo crescimento de 13% em 2007. Há sinais tímidos - inclusive uma forte recuperação nos empréstimos bancários - de que o crescimento, que caiu para 6,8% no quarto trimestre, pode ter batido no fundo do poço, depois que uma barragem de medidas de estímulo tomadas pelo governo começa a fazer efeito.

Pequim reconheceu com relativa rapidez a gravidade do desaquecimento na economia e anunciou já em novembro um pacote de estímulo de 4 trilhões de yuans (US$ 585 bilhões).

Muitos outros governos ainda não chegaram a esse amadurecimento. Na semana passada, a Austrália tornou-se o mais recente país a formular um grande pacote de estímulo, tendo anunciado gastos extras de US$ 29 bilhões.

O Japão, cujo Parlamento vive um impasse na discussão de medidas de estímulo, produziu uma série de ações heterodoxas, inclusive a decisão do banco central, na semana passada, de comprar até 1 trilhão de ações de propriedade de bancos.

Mesmo se essas iniciativas ajudarem a amortecer a dor do choque da demanda externa, a preocupação maior é com o que virá depois. Michael Pettis, um professor de Finanças na Universidade Pequim, argumenta que a China (e outros países) precisarão arquitetar um enorme reequilíbrio de suas economias direcionando-as para um crescimento puxado pelo mercado interno, para que possam ajustar-se a um mundo em que os consumidores americanos precisam recompor suas poupanças dissipadas.

"No melhor mundo possível, o consumo chinês cresceria em montante exatamente igual ao da queda no consumo americano", diz ele. Mas, como a economia americana tem dimensão mais do que três vezes superior à da chinesa, a magnitude de tal ajuste provavelmente estará além de suas possibilidades.

"Não há mais qualquer opção para a Ásia", concorda Clyde Prestowitz, presidente do Economic Strategy Institute, que durante anos advertiu que os desequilíbrios em nível mundial eram insustentáveis. "A Ásia tem de começar a consumir mais, mas não estou certo de que os líderes asiáticos com que tenho conversado tenham compreendido a questão", diz ele, acrescentando que isso exigiria modificações em provisões de crédito, incentivos tributários e regulamentação. "O modelo centrado em exportação extrapolou sua data de utilidade."

Se Prestowitz tem razão, a crise mundial significa mais do que um abalo cíclico nas economias asiáticas. Em vez disso, a crise sinaliza o começo de uma transformação profunda e, sem dúvida, dolorosa, à medida que se ajustam a um mundo no qual o consumidor americano deixou de ser o comprador de última instância. Se as economias asiáticas estão à altura desse desafio de longo prazo é algo que precisaremos perguntar aos adivinhos.