Título: Brasileiros rumam para Angola atrás de fortuna
Autor: Boechat , Yan
Fonte: Valor Econômico, 22/12/2008, Especial, p. A12

Às sete da manhã o calor já é sufocante na única sala de desembarque do Aeroporto Internacional de Luanda. Os dutos de ar condicionado espalhados pelo teto encardido tornaram-se apenas um conjunto decorativo que reforça a atmosfera decadente. Bem ao fundo, seis irritantemente tranqüilos oficiais da imigração angolana atendem os cerca de 250 passageiros que haviam embarcado no Rio de Janeiro seis horas antes. A sala fechada, sem ventilação, faz com que tudo pareça tão lento quanto realmente é. Yan Boechat / Valor

O pernambucano Murilo Salviano, que administra um granja, mesmo sem nunca ter tido experiência nessa área, e vive num "hotel" feito de contêineres

"Vai demorar no mínimo duas horas, melhor arrumar um jeito de fumar ", diz Wagner Ribeiro, para a incredulidade dos viajantes de primeira viagem que o cercam no fim da longa e parada fila da imigração. Resignado, ele caminha em direção à porta que dá acesso à pista de pouso, onde três guardas fardados conversam animadamente. "Posso fumar um cigarrinho, amigo", diz ao grupo. Um deles, aparentemente o mais graduado, olha para os colegas como que pedindo aprovação. "Senta ali, longe da porta", diz o oficial. Wagner protege o isqueiro do vento quente que sopra da pista e acende seu Hollywood a menos de 100 metros do balzaquiano Boeing 747-200 que o trouxe da capital fluminense.

É a segunda vez que esse paulista de Araraquara vem a Angola. A primeira foi há cerca de quatro meses, quando o colega de um antigo emprego o convidou. "Ele disse que isso aqui era uma mina de ouro e garantia que meu salário ia ser limpo, iam me pagar tudo", diz Ribeiro. Operador de maquinário especializado em impermeabilização de obras civis, aceitou a oferta, um tanto desconfiado. "Mas era dinheiro bom e decidi vir". Não se arrependeu. Nos três meses em que trabalhou em Luanda diz ter economizado US$ 18 mil, mais do que ganharia durante um ano de trabalho no interior paulista.

Yan Boechat / Valor

O piauiense Paulo Romero, que montou um grupo de empresas em Luanda As duas horas de espera previstas já haviam ficado para trás quando um rapaz novo, bastante simples e de sotaque amineirado, encontra dificuldades para convencer os oficiais angolanos de que está vindo a passeio ao país. Não consegue explicar onde ficará, como se sustentará e, ao fim, confessa que veio buscar trabalho. "Ele vai entrar, mas vai perder no mínimo mil dólares", diz Ribeiro, com ar professoral, enquanto o rapaz é levado por oficiais da imigração a uma sala reservada. Ribeiro ainda é um novato em Angola, mas parece ter compreendido bem as frágeis regras desse país arrasado por quase 30 anos de guerra civil e que agora tenta encontrar a ordem.

Ele está na mesma situação do rapaz detido, conta apenas com um visto ordinário, que não dá direito a atividade remunerada. "Mas trago uma carta-convite de uma empresa dizendo que vim conhecer o trabalho deles aqui, para futuros negócios", explica. Em menos de um minuto seu passaporte é carimbado e ele desaparece no meio dos extenuados passageiros que deixam o aeroporto.

Ribeiro e o rapaz detido fazem parte de um grupo novo, porém crescente, de brasileiros que estão vendo Angola como uma nova fronteira de trabalho bem remunerado em moeda forte. Diferentemente dos funcionários das grandes construtoras brasileiras que estão no país, como a Odebrecht, a Camargo Corrêa, a Queiroz Galvão e a Andrade Gutierrez, profissionais como Ribeiro vêm trabalhar em pequenas empresas angolanas ou mesmo tentar a sorte como microempresários no país. Estão, de certa forma, repetindo a diáspora de brasileiros que seguiram aos milhares para os Estados Unidos nas últimas três décadas.

Esse novo fluxo de imigração econômica é formado por pessoas com qualificação técnica em profissões simples, porém extremamente demandadas, como aquelas ligadas à construção civil. Eles raramente têm visto de trabalho, que lhes permitiria atuar profissionalmente sem que a fiscalização imigratória cause problemas, geralmente de ordem financeira.

Não se sabe ao certo quantos brasileiros estão em situação ilegal nesse país que viu uma sangrenta luta armada pelo poder cessar há apenas seis anos. Não se sabe nem mesmo quantos brasileiros vivem em Angola. A Embaixada brasileira tem apenas 7,5 mil deles registrados, mas estima que no mínimo 10 mil vivam no país como expatriados ligados a grandes empresas. "Nossa estimativa é que entre 20 e 30 mil brasileiros estejam vivendo ou trabalhando aqui, mas infelizmente não sabemos ao certo", diz o embaixador brasileiro no país, Afonso Cardoso.

A embaixada não sabe, por exemplo, que o pernambucano Murilo Salviano vive a menos de 20 km do imponente prédio da representação brasileira, que dá vista para o congestionado Porto de Luanda, onde os navios aguardam até 30 dias para desembarcar suas mercadorias. Salviano chegou há sete meses, uma semana depois de se casar. "Recebi o convite 15 dias antes do casamento, só deu tempo de casar e passar uma semana de lua-de-mel em Natal", conta, com um bom humor mal disfarçado. Ele tem 29 anos e sempre trabalhou em funções administrativas no Recife. O jeito com números, folhas de pagamento e fornecedores convenceu um amigo de que ele era o homem certo para administrar uma granja com 60 mil aves de um importante político angolano.

Até então, sua intimidade com frangos e galinhas se resumia às porções de frango a passarinho, aos assados de padaria que gostava de comer aos domingos e a outros quitutes galináceos. "Não conhecia nada, mas o salário de US$ 3,5 mil por mês com estadia paga me fez aprender rapidinho", conta, em meio a uma gargalhada.

Salviano quer ficar mais dois anos cuidando da granja Pérola do Kikuxi, para poder comprar uma casa para ele e sua mulher, com quem fala quase diariamente pela internet. "Essa é a única diversão que temos aqui, é nossa janela para o Brasil. Sem internet a gente vai à loucura", diz ele, em seu apertado quarto, na verdade é um contêiner adaptado com banheiro.

A proposta tentadora para administrar uma granja a alguém com inexperiência comprovada em galinhas é um exemplo emblemático da absoluta escassez de mão-de-obra em Angola. As décadas de uma guerra que envolveu todo o país dizimou a possibilidade de formar uma classe profissional. Em Angola é difícil encontrar alguém com mais de 25 anos que não tenha lutado. Com raras exceções, praticamente toda uma geração só aprendeu a utilizar com destreza o famoso fuzil AK-47.

A guerra civil só fez reforçar um processo de segregação intelectual que os portugueses instauraram nos quase cinco séculos de dominação do país. Com a independência, em 1975, os movimentos angolanos que lutavam contra os portugueses decidiram expulsar todos os colonizadores e seus descendentes. Historiadores angolanos e portugueses, que começam a analisar o que ocorreu naquela época, estimam que em 1976, quando a guerra civil já havia eclodido, não havia mais do que 3.000 pessoas com formação universitária ou técnica em Angola.

É por conta dessa escassez de profissionais que no início de dezembro o paraibano José Alberto da Silva trocou as ladeiras de Olinda pelas ruas esburacadas e sujas de Luanda. Na verdade, ele trocou foi o salário de quase R$ 1 mil que recebia na concessionária de caminhões Volkswagen Novo Mundo pelos mais de US$ 2 mil, livre de despesas, que recebe de uma empresa de coleta de lixo na capital angolana. "Assustei, mas o dinheiro era muito maior que o medo", diz ele, que foi indicado por "um amigo do amigo do amigo" a João Siqueira, outro brasileiro que coordena o time de mecânicos da companhia. Assim como o novato Silva, Siqueira também trabalha com visto ordinário e, dia desses, foi pego pela polícia de imigração. "Me mandaram embora do país, mas já voltei", diz, rindo.

Levando-se em conta o incrível acumulo de lixo nas ruas de Luanda, a empresa para qual eles trabalham deve crescer de forma vertiginosa. Com cerca de 400 mil habitantes em 1975, Luanda viveu uma explosão populacional nos anos mais duros da guerra, na década de 80, quando Estados Unidos e União Soviética fizeram do país mais um palco da Guerra Fria. Angolanos de todo país buscaram refúgio na capital e rapidamente não se contava mais a população em apenas centenas de milhares.

Hoje estima-se que Luanda tenha entre 4 e 6 milhões de pessoas amontoando-se, na maior parte, em grandes favelas sem nenhum tipo de infra-estrutura. A coleta de lixo, na verdade, é só um luxo para quem não tem agua encanada, luz elétrica nem o mais rudimentar sistema de saneamento básico. Andar pelas imundas vielas do Kazenga, uma gigantesca favela criada por cerca de dois milhões refugiados sobre o antigo lixão da Luanda colonial, é entrar no estereótipo das grandes e miseráveis cidades da África subsaariana.

Mas a miséria escancarada de Luanda engana. Em meio a tanta pobreza é difícil crer que os restaurantes por quilo cobram mais de US$ 3 por 100 gramas de comida, ou que uma garrafa de água mineral custe até US$ 8,5. Espanta ainda mais saber que o aluguel de uma casa simples, num bairro simples, não sai por menos de US$ 10 mil ao mês, com exigência do pagamento de 12 meses adiantados. Tudo isso por conta da explosão repentina de moeda forte na economia do país, um membro recente da Opep que, em 2009, se tornará o maior produtor de petróleo da África, superando a instável Nigéria. Não à toa, nos últimos quatro anos o PIB cresce a taxas próximas de 20%.

Quando chegou a Luanda vindo de Teresina (PI), há três anos, Paulo Romero ficou assustado com esse desequilíbrio macroeconômico. Ele foi para Angola tentar a sorte, com pouco dinheiro no bolso para os padrões locais. "Fiquei impressionado com o preço das coisas e as filas para comprar esses produtos caríssimos", diz. "Mas logo percebi que nada é caro num lugar em que não há referência de nada".

Ex-garçom, antigo dono de distribuidora de cerveja, agiota frustrado e empresário falido, Romero, já aos 48 anos, viu Angola como a última chance para se reerguer. "Inventei de ser empresário e montei uma misturadora de adubo no Piauí. Em menos de um ano estava devendo a todo mundo, completamente quebrado." Após ouvir de um conhecido que Angola era uma Serra Pelada de oportunidades, pegou US$ 30 mil emprestados com o irmão, um agiota profissional do interior pernambucano, para "fazer fortuna na África".

E fez. Hoje ele tem um pequeno império de pequenos negócios tão variados quanto sua experiência profissional. Sob o nome de Romero Intercontinental, sua empresa fabrica estruturas metálicas para tetos de zinco, transforma contêineres em escritórios, compra e vende qualquer tipo de quinquilharia que encalha no Porto de Luanda - de vasos sanitários a equipamentos de perfuração de petróleo -, tem um restaurante e em breve inaugurará um bingo para os comensais. "Quero que o dinheiro deles fique todo aqui", diz.

Mas o negócio mais excêntrico de Romero e o que confirma de forma perfeita sua tese de que não há nada caro onde não há referências é o seu hotel de contêineres, onde o pernambucano Salviano vive. Percebendo a dificuldade que muitos brasileiros têm de encontrar um lugar onde morar, ele comprou 24 contêineres marítimos, os reformou, instalou um pequeno banheiro e um ar condicionado em cada um e os chamou de quartos. Empilhou-os em duas fileiras de seis, montou escadas e um teto que cobre toda a área e batizou o local com o bem-humorado nome de Hotel Alcatraz. Para cada noite dormida o hóspede precisa desembolsar US$ 100. "Mas só alugo mensal, US$ 3 mil, sem choro."

Os 24 "quartos" estão lotados e a fila de espera é grande. Agora ele se prepara para montar o Alcatraz 2. Os contêineres já estão comprados, só falta reformá-los e empilhá-los. "Angola é isso: mesmo uma prisão como é esse meu hotel rende muito dinheiro. Aqui está tudo pra ser feito e o dinheiro é farto. Só é preciso saber jogar o jogo." Romero atribui boa parte de seu sucesso ao fato de ter percebido logo que o jogo em Angola não tem regras tão rígidas. "Aqui é igual garimpo: todo mundo quer ganhar. É a ética do dinheiro que manda."

Ele começou assim. Sem estrutura, a primeira coisa que fez ao chegar a Luanda foi imprimir mil cartões de visita o identificando como diretor de uma empresa de importação de peças e maquinário para a construção civil. "Sai distribuindo meus cartões para gerentes das construtoras que estavam aqui", diz. "Quando me pediam algo, eu dizia que estava na rua, e que chegando ia checar no estoque."

Mas não havia estoque. Nem empresa. Romero percorria todos os cantos de Luanda atrás do que era pedido e, quando encontrava, revendia o produto por até dez vezes o que pagara. Agora quer entrar no ramo da construção civil. Trouxe um engenheiro do Brasil, comprou caminhões e maquinário pesado para disputar os contratos. "O dinheiro grosso está aí e minha empresa já está registrada no governo, espero ganhar o primeiro contrato no ano que vem", diz ele, que nunca atuou nesse setor. "Quando me falaram, eu duvidei, mas aqui é mesmo a Serra Pelada da África, tem para todo mundo."

O otimismo de Paulo não é compartilhado por todos. As dificuldades de uma cidade superpovoada, sem estrutura e, apesar das semelhanças, com uma cultura bem distinta da brasileira, cobram seu preço. "É duro. Às vezes a gente passa pelo corredor à noite e ouve cabra macho chorando baixinho", conta o recém-casado Salviano. "Todo mundo que está aqui só pensa numa coisa: no dia que vai embarcar no "Bodão" e voltar para casa", diz ele, se referindo ao velho Boeing 747 das Linhas Aéreas Angolanas, que estampa em sua cauda o desenho de um parente distante do cabrito brasileiro, a palanca-negra, símbolo nacional de Angola.